Foi em meados do século XX que as oportunidades de acesso à escola pública se ampliaram por meio do crescimento do número de instituições escolares e, consequentemente, do aumento de possibilidades de matrículas no ensino fundamental. Desde então, a taxa de escolarização da população cresceu significativamente, em um processo contínuo que nos trouxe à atual universalização do ensino fundamental: em 2015, a taxa de escolarização de pessoas de 6 a 14 anos atingiu 98,6%. Assegurou-se a todos o direito à educação, mas pode-se dizer que se atingiu a democratização da educação?
Consideremos a aprendizagem da língua escrita, condição necessária para a continuidade do processo de escolarização em todas as áreas e todos os níveis de ensino. Compare-se a taxa de universalização de acesso à escola com os resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) em 2016: mais da metade (54,7%) das crianças no 3º ano do ensino fundamental foram avaliadas como estando em “nível insuficiente”, quando já teriam pelo menos três anos de escolarização (“pelo menos”, porque não estamos considerando a frequência à educação infantil, fase inicial do processo de alfabetização) e deveriam já estar alfabetizadas, capazes de ler e interpretar pequenos textos, habilidades avaliadas pela ANA.
Esses são dados recentes. Se olharmos historicamente, o fracasso em alfabetização tem sido uma constante na educação pública brasileira. Para não retrocedermos muito, em 1982, mais da metade das crianças repetia a 1ª série, considerada então como o “ano da alfabetização”. Repetiam uma vez, duas vezes, três vezes até que fossem consideradas alfabetizadas, o que significava, em geral, apenas serem capazes de decodificar (ler) e codificar (escrever) palavras.
Diante desse reiterado fracasso na alfabetização das crianças, conclui-se que a universalização do ensino fundamental, na verdade, não resultou em democratização da educação: ter acesso à escola mas não ter acesso a um ensino de qualidade significa não conquistar igualdade de direitos e de possibilidades – bases da democracia.
Considerando a aprendizagem da língua escrita particularmente, não se apropriar de habilidades de leitura e escrita faz com que o fracasso se estenda ao longo da escolarização, que depende fundamentalmente dessas habilidades. Há estatísticas que comprovam que as taxas de insucesso escolar crescem ao longo do ensino fundamental a partir do 3º ano: alunos não conseguem avançar para o próximo ano letivo, ou avançam sem habilidades básicas de leitura e de escrita. A pesquisa do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), na edição de 2018, verificou que, entre as pessoas que possuem os anos iniciais do ensino fundamental, mais de dois terços (70%) permanecem na condição considerada Analfabetismo Funcional: têm muita dificuldade para fazer uso da leitura e da escrita em situações da vida cotidiana, como reconhecer informações em um cartaz ou folheto.
As respostas do poder público a esse persistente fracasso na aprendizagem inicial da língua escrita, com tão graves consequências, não têm produzido efeito: de um lado, avalia-se periodicamente o nível de alfabetização das crianças como forma de exercer controle sobre a qualidade da alfabetização e do letramento; de outro lado, diante da repetida constatação da baixa qualidade, implantam-se políticas de formação de alfabetizadores, canceladas e substituídas a cada nova gestão nacional, estadual ou municipal.
Já a resposta pedagógica tem-se limitado, ao longo dessas décadas de fracasso escolar em alfabetizar as crianças, à escolha entre métodos de alfabetização, o que resulta em uma permanente alternância entre propostas, em um movimento pendular, um vaivém entre métodos que, na verdade, por caminhos diversos, orientam-se pela mesma concepção restrita de alfabetizar: ensinar a criança a ler (a leitura entendida como decodificação) e a escrever (a escrita entendida como codificação). Assim, até os anos 1980, a alfabetização era considerada a decifração e cifração de um código: relacionar sons da fala às letras do sistema alfabético, e não um sistema de representação, que precisa ser compreendido.
Foi só na década de 1980 que ganharam evidência conhecimentos que vinham sendo construídos, em várias ciências, sobre o processo de aprendizagem da língua escrita pela criança e sobre o objeto dessa aprendizagem, gerando mudanças na concepção de alfabetização.
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Magda Soares é professora titular emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da UFMG. Graduada em Letras e doutora e livre-docente em Educação. Em 2017, recebeu o prêmio Jabuti de melhor livro de não ficção do ano com Alfabetização: a questão dos métodos (Editora Contexto). Também pela Contexto, publicou, como autora, Linguagem e escola e Alfabetização e letramento, Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever e, como coautora, O Brasil no Contexto 1987-2007 e O Brasil no Contexto 1987-2017.