A segurança dos judeus na Alemanha, um ano após o atentado de Halle. Em 9 de outubro de 2019, um homem de 27 anos tentou em vão invadir a sinagoga na Saxônia-Anhalt, acabando por deixar dois mortos. Que conclusões tiraram a polícia, a política e a sociedade alemãs?
O atentado terrorista de 2019, na cidade de Halle, prejudicou bastante a imagem da polícia alemã. Nas horas que se seguiram ao que pode ter sido a pior atrocidade antissemítica na Alemanha desde o Holocausto, o líder da comunidade judaica local, Max Privorozki, queixou-se amargamente da complacência dos agentes da lei. O ataque completou um ano nesta sexta-feira (08/10).
“Dissemos diversas vezes que queríamos proteção policial diante das sinagogas e comunidades do estado da Saxônia-Anhalt, como acontece nas metrópoles, Berlim, Munique, Frankfurt”, comentou à emissora pública MDR, no dia seguinte. “Mas sempre nos diziam: tudo fantástico, tudo ótimo, tudo OK.”
Privorozki era um dos 52 presentes à celebração do Yom Kippur na cidade do Leste alemão, em 9 de outubro de 2019, quando Stephan B., de 27 anos, vindo de uma cidade vizinha, tentou abrir caminho para dentro do prédio, munido de um arsenal caseiro de armas de fogo e granadas. Ele fracassou basicamente devido às precauções de segurança da própria comunidade: uma porta forte trancada e uma câmera de vigilância.
Ainda em meio ao choque pelo ato criminoso, a atenção voltou-se para a displicência da polícia: como veio à tona durante o processo ainda em curso, ela não registrara que o autor do atentando passara de carro diante da sinagoga, poucos minutos mais tarde, fugindo após haver assassinado dois alemães não judeus.
Na época, Josef Schuster, presidente da Conselho Central dos Judeus na Alemanha, principal organização da comunidade no país, classificou como “escandalosa” a negligência da polícia estadual. Esta tentou recuperar a confiança perdida, mantendo-se agora em contato constante com a comunidade judaica de Halle, em questões de segurança.
Antissemitismo em escala maior
Porém outros incidentes em 2019 não foram exatamente benéficos às relações entre as duas partes. No começo de junho, um policial de Halle foi submetido a medidas disciplinares após ser chamado para investigar uma cruz suástica de papel depositada diante do escritório da comunidade. Embora tenha relatado que não encontrara nada, o circuito fechado de TV do edifício revelou que ele próprio removera a suástica, após pisar nela, aparentemente por acidente.
“Enquanto houver essa falta de convicção, a coisa não vai funcionar”, comenta Sigmount Königsberg, comissário para assuntos de antissemitismo da organização da comunidade judaica em Berlim. E cita outros casos de crimes antissemíticos ignorados ou minimizados no país.
Em 2015, um tribunal de Wuppertal, no oeste alemão, deliberou que um ataque incendiário a uma sinagoga não fora necessariamente antissemita, já que os perpetradores não tinham manifestado nenhum sinal de antissemitismo antes. “Só se pode mesmo colocar as mãos na cabeça”, observa Königsberg. “Quebrar a confiança é muito fácil, formá-la leva mais tempo.”
A atitude política tampouco tem ajudado. No início de outubro de 2020, o secretário do Interior da Saxônia-Anhalt, Holger Stahlknecht, causou indignação ao pedir compreensão à população, pois, devido à nova obrigação de proteger instalações judaicas, talvez os agentes não fossem sempre pontuais em atender a outros chamados (mas não os de emergência, apressou-se em ressalvar).
“Um secretário do Interior não tem problemas em apresentar os judeus como grupo privilegiado e jogá-los contra outros grupos da população”, condena Schuster. “Mas ele está incentivando o antissemitismo.” Andreas Nachama, presidente da Conferência Geral dos Rabinos (ARK, na sigla em alemão), resume assim situação:”É claro que os políticos reagem, mas com uma certa relutância.”
Emigração interna
Proteger comunidades minoritárias locais é responsabilidade das polícias estaduais na Alemanha, o que muitas vezes implica diferentes níveis de segurança e sensibilidades ao longo do território nacional. Ilia Choukhlov, membro da comunidade judaica de Nurembergue, Baviera, afirma não ter visto nenhum sinal de que as sinagogas estejam mais bem protegidas do que antes do atentado em Halle.
“Nada mudou. No Yom Kippur, na semana passada, muitas sinagogas não tinham polícia na frente. Falou-se muito, mas quando você vai discutir medidas práticas de segurança, aí dizem: ‘Não, não, a polícia vai proteger vocês, tudo está bem.”
Fato é que muitos judeus não se sentem seguros na Alemanha, como reconheceu a chanceler federal Angela Merkel num discurso em setembro, por ocasião dos 70 anos de fundação do Conselho Central dos Judeus. Choukhlov também registra esse estado de coisas.
“Já se fala de novo de emigrar, ou de se mudar para cidades grandes, onde se pode desaparecer mais facilmente. E esse termo que está sendo novamente usado: ‘emigração interna’, em que você não mostra para fora que é judeu, só expressa entre suas quatro paredes. Estou vendo coisas que nunca vi antes na Alemanha.”
A conclusão subjacente a esses testemunhos é que a complacência da polícia reflete uma apatia mais ampla da sociedade alemã, a constatação de que os alemães não prestaram a devida atenção ao antissemitismo crescente no seio de sua sociedade.
Lições de Halle?
A radicalização de Stephan B., demonstrada em seu próprio relato, ilustra como a islamofobia renascida na Alemanha após o fluxo migratório de 2015 se desenvolveu numa forma de antissemitismo horrivelmente familiar à história do país. Em seu “plano” publicado online antes do ataque, o terrorista de Halle deixava claro que abonava a velha narrativa antissemita de que os judeus são quem governa o mundo.
Halle pelo menos acordou os alemães para esse perigo, avalia Gideon Botsch, diretor do Centro de Pesquisas Emil Julius Gumbel (EJGF), da Universidade de Potsdam, dedicado ao antissetimismo e o extremismo de direita. De fato, nos dias seguintes ao atentado, milhares saíram às ruas da cidade na Saxônia-Anhalt, formando uma corrente humana para proteger simbolicamente a sinagoga.
“Foi uma experiência nova para a minoria judaica da Alemanha, e houve um grau considerável de solidariedade, tanto na própria Halle quanto no resto do país. Os cidadãos expressaram condolências e apoio. Sem dúvida foi algo novo e positivo” diz Botsch.
Ele acrescenta que, no nível político, uma série de medidas já havia sido iniciada antes do ataque, com a instauração de comissários para o antissemitismo e outras repartições de contato no âmbito federal e estadual, assim como mais programas de pesquisa sobre o antissemitismo.
Diversas medidas e programas “foram confirmados, e talvez acelerados” pelos assassinatos na cidade do Leste alemão. Berlim provavelmente tem o sistema mais progressista, com comissários para o antissemitismo tanto para a polícia como para o Judiciário, além de um para o próprio governo estadual, aponta o diretor do EJGF. Outros estados, contudo, estão bem mais atrasados.
Entre essas novas iniciativas esteve o lançamento de portais online para denúncia de incidentes antissemíticos, promovido em 2018 pela Associação Federal de Departamentos de Pesquisa e Informação sobre o Antissemitismo (Rias), que agora tem divisões regionais em quatro estados alemães. Isso tem contribuído para não seja mais ignorado aquilo que Königsberg denomina “contexto antissemita” de certos crimes.
Annette Seidel-Arpaci, diretora da Rias na Baviera, revela que sua organização registrou, em um ano, sete incidentes antissemíticos diante de sinagogas bávaras. No entanto, ela está quase certa de tratar-se apenas da ponta de um grande iceberg, “porque estou segura de que nem tudo é relatado para nós”: “Na maioria dos casos, é fato que os passantes não intervêm”, comenta.
“Acho difícil dizer se houve qualquer aumento da conscientização entre a sociedade mais ampla, depois de Halle. Quem já estava sensibilizado, talvez esteja um pouco mais sensibilizado”, admite Seidel-Arpaci. “Mas também é fato de que uma maior conscientização deveria implicar que a população interviesse mais e, certamente, colocar proteção policial em cada sinagoga.”
Como escreveu o rabino Andreas Nachama no jornal Jüdische Allgemeine: há muito o que fazer, mesmo um ano depois.
Fonte: DW Brasil