Sou da geração que nasceu só dois anos após o início do Programa Apollo, em 1961. Ao contrário dos meus pais, ver a Terra a partir do espaço já estava no meu DNA. Para mim, é tão natural vê-la nascer no horizonte de outro planeta quanto era para eles ver a Lua surgir no horizonte. Fiz da Astrobiologia, o estudo da vida no Universo, o objetivo de minha vida, mantendo os olhos fixos nas estrelas, enquanto exploro paisagens planetárias já familiares. Alguns dias antes de eu completar 26 anos, a sonda espacial Voyager 2 sobrevoou Netuno: ela passou a menos de 5 mil quilômetros do polo norte desse outro planeta azul, enviando nos imagens históricas, manchete nos jornais no mundo inteiro. Era o ponto mais distante já alcançado pela humanidade (mesmo que fosse por uma sonda robótica). Foi o último sobrevoo planetário da Voyager 2. Muito tempo depois, em 5 de novembro de 2018 (seis anos após a Voyager 1), ela deixou para sempre a heliosfera. Quando se pensa nisso, cerca de 60 anos se passaram entre o momento em que o Sputnik entrou em órbita ao redor da Terra e aquele em que as duas Voyager navegaram para fora dos limites do Sistema Solar – uma fração de segundo na escala cósmica. A humanidade estava apenas começando a tomar consciência de sua vizinhança planetária, mas com uma curiosidade cada vez maior.
Em 1996, participei do primeiro workshop de Astrobiologia na Nasa Ames Research Center, na Califórnia, onde eu era uma jovem pesquisadora. Dois anos depois, foi lá também que vi surgir o Instituto de Astrobiologia da Nasa (Nasa Astrobiology Institute, ou NAI). Umas após as outras, as missões mostravam que o Sistema Solar era povoado de mundos onde uma vida simples microbiana poderia ter surgido num passado longínquo. E será que alguns desses mundos ainda possuem vida? A Astrobiologia nasceu desses questionamentos. Hoje ela é o foco da ambição de todas as nações envolvidas em viagens espaciais. O NAI continuou baseado na Nasa Ames por 20 anos, evoluindo depois para redes coordenadas de pesquisa que abrangem os grandes temas da Astrobiologia.

Em 1998, a apenas alguns quilômetros da Nasa Ames, entrei num auditório do Instituto Seti,* em Mountain View, Califórnia, numa tarde de fim de verão. Meu coração estava acelerado. Do outro lado da mesa, estava o astrônomo Frank Drake. Ele me convidou a sentar e, com voz suave, começou uma conversa sobre minha trajetória profissional e pesquisas. Fez perguntas sobre minha relação com a “Equação de Drake” e os programas sobre a vida no Universo do Instituto, que vão da origem da vida à busca de inteligência extraterrestre. Na época, Christopher Chyba era diretor do Carl Sagan Center, divisão de pesquisa do Instituto Seti para a qual eu me inscrevera, mas ele estava fora naquela semana. Foi Frank Drake, então, que me entrevistou e me recrutou para um cargo de pesquisadora no Instituto.
Em 2003, eu me tornei parte da equipe científica de um programa de pesquisa dirigido por Christopher Chyba, que fora selecionado e financiado pelo NAI. Lá eu faria minha própria exploração, que ficou conhecida como o “Projeto dos Altos Lagos” e marcou o início de minha odisseia nos Andes, onde minha equipe e eu tentamos compreender a habitabilidade planetária e o tipo de vida que pode já ter existido (ou ainda existir) em Marte. Estudamos também suas assinaturas geológicas e biológicas, explorando ambientes terrestres extremos que se constituem como análogos importantes para as condições do Planeta Vermelho.
Doze anos depois, foi minha vez de dirigir um projeto multidisciplinar para o NAI no Instituto Seti. Buscávamos desenvolver técnicas de exploração planetária capazes de detectar assinaturas da vida, ou “bioassinaturas”. E foi também em 2015 que fui nomeada diretora científica do Carl Sagan Center nesse Instituto. Esse cargo permitiu a continuidade das pesquisas de campo com minha equipe e me ofereceu, ao mesmo tempo, um ambiente e um estímulo intelectual que promoviam o desenvolvimento de uma visão estratégica para a pesquisa da vida no Universo, num instituto inteiramente dedicado a isso desde sua criação.
Quando penso na história do Instituto Seti, na presença de Carl Sagan no conselho de administração, pouco antes de sua morte, e no que ele representava para a Astrobiologia e para outras áreas, esta foi sem dúvida a maior honra que já recebi. Um dos meus lemas é que os títulos só valem pelo uso que lhes damos e, fiel a esse espírito, quando tomei posse, pendurei uma foto de Carl Sagan ao lado da minha mesa para ter certeza de que seria a primeira coisa que veria ao chegar pela manhã. Escolhi um retrato em preto e branco, com um ar sonhador, mas com um olhar benevolente e concentrado, com a mão no queixo. O tempo passa, mas Carl Sagan continua sendo para nós, astrobiólogos, uma fonte infinita de inspiração. É também uma piscadela para meu passado, uma ponte que me conecta a meus anos na França, quando ele contribuiu para consolidar minha paixão já bem real pelo estudo da vida no Universo em nosso encontro em Paris, em novembro de 1986. Por fim, é um lembrete constante de que, nesse escritório como na vida, não se deve temer ideias ambiciosas, pois “julgamos nossos progressos pela disposição para acatar o que é verdadeiro em vez daquilo que agrada”, como ele escreveu. Evidentemente, para ir além da mera especulação sobre o mundo, essa citação deve ser logo seguida de outra – “afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias” – conhecida também como “princípio de Sagan”. Essa ideia, uma variação de afirmações formuladas em diferentes épocas por grandes pensadores, como Flournoy, Laplace, Hume ou Jefferson, é uma necessidade em cada etapa da ciência e deve, mais do que nunca, ser o mote de nossa pesquisa da vida no Universo.
Dezembro de 2016: diante de uma plateia de centenas de colegas, num dos grandes auditórios do Moscone Center, em São Francisco, eu estava nervosa. A American Geophysical Union me honrara com o convite para apresentar a Conferência “Carl Sagan”, um prêmio anual que recompensa os pesquisadores que incorporam o interesse de Sagan pela Astrobiologia e sua paixão pela divulgação científica. O prêmio também presta homenagem à sua vida e liderança no desenvolvimento da Astrobiologia. Isso era ainda mais significativo para mim porque a entrega do prêmio coincidia com dois aniversários importantes: a conferência acontecia quase 30 anos após nosso encontro em Paris e poucas semanas antes do vigésimo aniversário de sua morte. Além disso, eu também havia sido nomeada diretora científica no Carl Sagan Center, do Instituto Seti, um ano e quatro meses antes.
Como introdução à conferência, decidi falar de nosso encontro de 1986, da sua importância em minha vida e de como ele continua estranhamente a influenciá-la, mesmo tanto tempo depois de sua morte. Nesse breve encontro em Paris, ele me falara com paixão da pesquisa da vida no Universo, de resiliência, de nunca permitir que alguém ditasse o que eu podia fazer ou quem podia ser. Sorri quando insistiu que eu me mantivesse sempre mais fiel à ciência e aos dados do que às opiniões, mesmo quando eles contradissessem as ideias estabelecidas. Falou por um tempo de sua própria paixão. Percebi, então, que eu não só estava diante do grande Sagan, mas, melhor do que isso, eu o tinha somente para mim.
Prossegui com a conferência intitulada “A coevolução da vida e do meio ambiente e a busca astrobiológica”. A apresentação estava centrada na exploração de Marte, pois o Planeta Vermelho era o foco da minha pesquisa na época, com um projeto financiado pelo NAI. A conclusão tecia considerações mais amplas sobre a busca da vida no Universo e sobre como a inteligência artificial poderia se tornar uma ferramenta central dessa ciência. Concluí sobre a importância capital de empregar a noção de coevolução da vida e de seu meio ambiente ao nosso próprio planeta e à sua biosfera, a única que conhecíamos. Salientei, por fim, a necessidade urgente de utilizar as tecnologias de ponta desenvolvidas para a exploração planetária para acelerar e reforçar o acompanhamento das mudanças no meio ambiente terrestre e administrar suas consequências para as gerações futuras.
A preparação dessa conferência me levou a refletir sobre o que havia mudado desde a concepção de Carl Sagan sobre os “limites do oceano cósmico”, desenvolvida em sua série Cosmos nos anos 1980. A resposta é ambígua: muito e bem pouco ao mesmo tempo. O que mudou de modo espetacular foi, sem nenhuma dúvida, o número de missões, o volume de dados, a tecnologia, os sistemas e os instrumentos de que dispomos. Em apenas algumas décadas, assistimos a progressos vertiginosos apoiados por uma inovação constante, acelerando exponencialmente nossos conhecimentos e a criação de novos meios de exploração. A Astrobiologia também se tornou a disciplina oficial dedicada a essa pesquisa. Desde a década de 1970, a quantidade de dados acumulados pelas missões de exploração espacial exige uma abordagem multidisciplinar e uma interpretação holística. A Astrobiologia fornece essa nova plataforma para o estudo da vida no Universo, revolucionando o modo de fazer ciência, reunindo diversas áreas de pesquisa, suas perspectivas e seus métodos. Essa visão sistêmica da Astrobiologia demonstrou inúmeras vezes desde então a que ponto o todo é infinitamente mais poderoso do que a soma das suas partes.

Porém, há também o outro lado da moeda. Ainda que essa exploração nos forneça dados abundantes, a criação de novas estruturas de pensamento ocorre numa cadência muito mais lenta. A comunidade astrobiológica se reúne regularmente para estabelecer visões estratégicas, documentos técnicos e investigações decenais que incluam os últimos dados, as descobertas mais recentes e a pauta do futuro da ciência, da tecnologia e da exploração da vida no Universo. Entretanto, embora nosso conhecimento do cosmos e de seu potencial para abrigar vida tenha se transformado completamente nos últimos 40 anos, questões fundamentais relativas à origem da vida e à sua natureza permanecem sem resposta. Talvez uma parte do problema resida no fato de que, nessa busca, somos tanto o experimento quanto o cientista, a vida que se interroga sobre sua origem. Essa relação íntima nos abre para uma percepção inconsciente de nossa relação com nosso planeta e com o Universo que nos rodeia e, quanto mais avançamos, menos precisa se torna a separação e mais se dissipa o medo de imergir na imensidão de sua profundidade.
Mesmo que ainda não saibamos bem onde nos levará essa busca e o que procuramos exatamente, não é isso que importa. As respostas se apresentarão à medida que avançarmos. O importante é estar na estrada, ao mesmo tempo como atores e espectadores da odisseia mais extraordinária jamais empreendida pela humanidade. Estamos à procura de nossas origens e de um eco cósmico que um dia nos revele, enfim, que não estamos sozinhos no Universo.
N.R.T.: Seti é uma sigla em inglês (de Search for Extraterrestrial Intelligence) que significa busca por inteligência extraterrestre. Ela pode aparecer sozinha em uma frase, remetendo à ideia do procedimento/ações/pesquisas científicas dentro desse objetivo, mas pode também aparecer como o nome de institutos, projetos ou programas específicos, como será eventualmente apresentado ao longo do livro.
Nathalie A. Cabrol é astrobióloga e diretora do Carl Sagan Center do Instituto Seti. Além da Astrobiologia, tem formação em Ciências Planetárias e Ambientais. Sua pesquisa se concentra na exploração da habitabilidade e da vida fora da Terra. Publicou centenas de artigos em revistas especializadas, além de ser autora de três livros sobre ciência e exploração planetária, Astrobiologia e ambientes terrestres extremos. Apresenta palestras sobre esses temas, tendo uma participação no TED em 2015. Nathalie recebeu diversos prêmios, inclusive da Nasa, é bolsista Carey (Wings Worldquest Women of Discovery Air and Space, 2007) e membro da Academia de Ciências da Califórnia desde 2016.

