– Eu preciso ganhar dinheiro. Urgente – disse Achiles à Lília, enquanto tomavam um café expresso bem perto da sua casa, num bairro pouco inteligente. Lília estava há mais de uma década no cargo de grande amiga, com uma folha corrida invejável, mas agora vivia intervalos maiores de distância. Quando se encontravam, as comportas se rompiam e acontecia um jorro de conversa, palavras atiradas para todos os lados.
– E como você quer ganhar dinheiro, meu amigo? – respondeu ela.
– De preferência trabalhando. Preciso de um trabalho, Lília. Urgente – respondeu.
Vivia sozinho e, naquela casa, ele era a única fonte. Há anos procurava algo que o remunerasse de maneira regular e suficiente para quitar suas contas básicas: telefone, internet, luz, condomínio, gás, remédio de uso obrigatório, dentre outros. Sem contar o transporte público, o alimento e pequenos imprevistos – em posição de ato público e com palavras de ordem. Sem contar, também, um doce ou um cafezinho expresso, que por vezes se atravessavam em seu caminho e o constrangiam sem rodeios, pouco se importando com a presença de outras pessoas.
– Você me disse que estava dando aulas numa escola, é isso? – disse Lília
– Não, não era uma escola. Era aula particular para um garoto que queria entrar na faculdade e precisava aprender História Geral – Achiles respondeu.
Dois dias depois desse encontro casual, uma nova aula aconteceu. O garoto estava se saindo bem. Seu desempenho era animador. O professor Achiles fez planos para aprofundar alguns temas. Queria levá-lo a um novo patamar – diz o velho clichê, que não vou usar, que em matéria de conhecimento da História “o céu é o limite”. E o professor não deixava de lado a ideia de que ninguém acaba com um punhado de barro nas mãos, quando tenta alcançar as estrelas.
– Professor, agora eu vou precisar estudar outras matérias. Então eu vou parar com as aulas de História. Mas olha, valeu, valeu mesmo… – disse o aluno.
Assim, melancolicamente, aquela pequena entrada de dinheiro, verba semanal que bancava pequenas despesas, ao menos algumas consideradas essenciais, batia asas sem promessa de retorno. O dinheiro não livrava Achiles do cheque especial, mas permitia que evitasse o afundamento ainda maior nos juros abusivos. Afinal, as contas chegavam a cada mês, sem pedir licença nem consultar o caixa, e com uma pontualidade tão rigorosa que os britânicos desejariam ter. Enquanto isso, em todos os sentidos, o efeito bola de neve crescia diariamente, com uma disposição de fazer inveja a qualquer norueguês.
Lazer? Férias? Não. Isso seria um propósito abusivo e ousado. Trabalhar cansa. Mas não trabalhar cansa muito mais, porque corrói a dignidade e tritura a autoestima. Para esse mal, nem a mais avançada farmacologia, empenhada na solução de enfermidades crônicas, inventou qualquer forma de remédio.
Achiles não precisava de muita coisa. Sem trabalhar fora, gastava pouquíssimo dinheiro com a compra de itens como roupa e calçado, por exemplo. Aqui e ali, ele tinha a sorte de ganhar de amigos algumas peças em ótimo estado, único dono, itens que davam imensa alegria ao seu guarda roupa enfadonho. Ao contrário do que acontece em certa capital federal, ele não dispunha de “Auxílio Paletó”.
Lojas de grife? Só conhecia por conta do atrevimento de às vezes ter o descuido de entrar em uma delas. Apenas por curiosidade, certa vez Achiles decidiu fazer uma experiência. Entrou em um desses templos do consumo para ter uma ideia do que acontecia lá dentro em termos de layout e produtos, tudo muito sóbrio, calculado. Ele era um ser estranho naquele ambiente sofisticado. Por isso mesmo, logo foi encarado pelo segurança.
– Você foi “encarado pelo segurança”? Como assim? – perguntou Lília.
– Sim, ele ficou o tempo todo atrás de mim.
– E você?
– Eu fiquei na frente, oras! – respondeu Achiles, soltando uma gargalhada.
– Fazendo piada de novo, eu te conheço – disse Lília – Mas explica isso.
– Eu fiquei à frente dele, no sentido de que estava acima de tudo aquilo. Estava só observando o comportamento de alguém que é apenas mandado – refletiu, em voz alta.
– Sim, e depois? – prosseguiu Lília.
– Bem, eu andava, ele andava. Eu parava, ele parava. Eu subia, ele subia. Eu descia… Passeamos longamente pela loja – disse, rindo bastante. – Foi divertido. Queria ver aonde aquilo ia chegar.
Claro que pessoas maldosas, exceto o prezado leitor e a querida leitora, vão afirmar que isso é crítica engajada de quem não tem dinheiro para consumir. Mas Achiles prometeu gastar até seu último centavo de palavra para provar o contrário neste tribunal, e há de conseguir ao menos uma condicional.
Achiles sabia viver de maneira espartana, apenas com o indispensável, como se vivesse uma história escrita em tempos de calamidade e racionamento de itens essenciais à vida. Na prática, ele vivia numa terra dominada por um conflito do qual não conseguia fugir. Enquanto isso ensaiava para o dia em que, como Noé no primeiro momento que se seguiu após o dilúvio, esse quadro mostrasse uma figura mais positiva e feliz – um pombo levando no bico a primeira muda de árvore a ser plantada, sacramento de um recomeço a respeito do qual lhe parecia que até mesmo Deus duvidaria.
Seus possíveis clientes se recusavam a aparecer e, menos ainda, à prática da multiplicação. Compra e recompra eram atores que simplesmente desapareciam da face da terra seca em que Achiles caminhava.
E quanto às dívidas? As dívidas eram maldosas, não pensavam em qualquer forma de trégua. Viviam agitadas, estressadas, querendo aprontar aquilo que fazem muito bem: tirar o sossego e a paz, com o cuidado de arrancá-las pela raiz. Elas nasciam feito erva daninha. Na economia de Achiles a conta não fechava. O peso da lei, a pressão exercida pelo estômago sobre todo o organismo, tudo isso se avolumava de tal forma que manter o controle se tornava uma tarefa cada vez mais exigente e difícil.
– É bom tomar cuidado. Lembre-se que você é cardíaco, teve aneurisma no cérebro… – disse Jorginho, velho amigo que conheceu na faculdade.
– Tudo bem. Olha, eu sou um cristão budista, sabe? Todo dia eu me exercito mais um pouco para manter o autocontrole. Enquanto isso, procuro uma forma de resolver essas questões – respondeu Achiles.
Mas era preciso mais. Por exemplo, evitar novas convulsões, que celebravam cada aumento excessivo de estresse para justificar o comparecimento nada desejado. Se me perguntam até quando Achiles suportaria caminhando com equilíbrio sobre esse fio cortante, digo que talvez a resposta para essa pergunta seja assunto do próximo bloco, depois dos comerciais, não saia daí. Ou de bloco nenhum.
Sem braços para alcançar o equilíbrio, para os pés fincados no chão restava apenas a rudeza dessa terra. A continuar dessa maneira, tudo apontava para um tsunami inevitável, a força da água e do lixo levando ribanceira abaixo tudo o que Achiles pensava construir e o que já estava devidamente alicerçado, se é que estava.
A ideia de encostar-se em alguém lhe parecia, como sempre, algo pesado demais para ser adotado como filosofia de vida. Antiético, antiestético, anti qualquer forma de valor humano e social. Anti-Achiles. Como no cinema, haveria de ter a cena da virada, quando o bem começa sua batalha definitiva, com vantagens, a fim de vencer o mal. O esperado desfecho precisava ser iniciado. Era tudo ou nada. Ele só não aceitava cometer o pecado da omissão.
Ganhar dinheiro, no pior sentido que a expressão pode ter? Não. Receber dinheiro por serviços prestados e avaliados? Sim. Nada parecido com presente gratuito. Apenas a remuneração, justa.
Achiles desejava receber dinheiro trabalhando, porque isso era o que lhe parecia o mais honesto. Com tempo de sobra, aceitava qualquer tarefa que estivesse em condições físicas e intelectuais de desempenhar. Só não era leviano a ponto de tagarelar que “pega qualquer coisa”, porque isso equivaleria a estar preparado para ser, a qualquer hora, bailarino, piloto de avião, médico, bombeiro e mais qualquer outra profissão existente no planeta.
“Você é teimoso. É duro na queda” – dizia sua mãe. Achiles sempre foi. Sempre teimou em não desistir. Por isso atravessou o Mar Vermelho e estava no deserto, a caminho da Terra Prometida.
Detalhe: quando a Promessa é feita por Deus, o deserto se rende e a vida se renova.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao