Em série especial de três artigos, nossa colunista explora como mudou a visão da sociedade sobre a cannabis e o que está em jogo na regulamentação.
Quando iniciei minha carreira de pesquisadora na área de dependência química, no início dos anos 1990, a noção geral relacionada ao consumo de maconha era que a droga representava a “porta de entrada” para outras substâncias psicotrópicas. A percepção era de que experimentar cannabis levaria, quase inevitavelmente, à dependência e ao uso e coisas “mais pesadas”, como cocaína e heroína, podendo culminar numa vida marginal e desviante em relação ao que se espera na sociedade.
Nos últimos anos, o olhar sobre a questão mudou tanto a ponto de bancos de investimento no Brasil enviarem a seus clientes oportunidades de aplicações na indústria de cannabis.
De lá para cá, um movimento amplo de legalização da maconha ocorreu em várias partes do mundo. No momento, o Uruguai, o Canadá e vinte e três estados americanos permitem, com diferentes regras, o consumo não médico. Não vou chamar de uso “recreativo” porque este termo ignora eventuais problemas do consumo.
Na Holanda, a maconha é vendida nos famosos coffee shops, mas é contra a lei possuir, vender ou produzir a substância. Já o consumo medicinal é permitido, em algumas de suas formas, em inúmeros países, incluindo o Brasil. E há um projeto de lei visando estabelecer, por aqui, um marco legal para o mercado da cannabis.
De qualquer forma, uma vez que a legalização foi se tornando uma realidade nesses locais, toda uma estrutura econômica tem sido montada em volta da maconha. Um exército de produtores, donos de loja, fabricantes de produtos derivados da planta e publicitários voltados ao mercado foram surgindo e se desenvolvendo.
Em uma rápida busca que fiz em um site americano de empregos, apareceram milhares de colocações, incluindo: “budtender” na Califórnia (com a exigência de uma “atitude respeitosa e entusiástica em relação à indústria da cannabis”); vice-presidente de operações de uma companhia focada nesse ramo (salário iniciando em 120 mil dólares por ano); e agricultor no estado de Washington (com direito a seguro saúde e dental).
Os impostos provenientes da indústria começam a ser importantes para seus estados. Por exemplo, só o estado do Colorado, um dos primeiros a permitir a venda legal de maconha, arrecadou 135 milhões de dólares em impostos em 2015. No Canadá, que legalizou o comércio de maconha em 2018 no país inteiro, a receita tributária chegou a mais de 1 bilhão de dólares no ano fiscal 2021-2022.
No entanto, a legalização não é um processo simples. Chama a atenção que esses números impressionantes estão sendo ameaçados (projeção de queda de 23% por exemplo na cidade de San Diego, Califórnia), por conta do mercado ilegal, que está longe de ter sido extinto. No Canadá, cerca de metade da população de usuários ainda relatava em 2020 – dois anos após a legalização no país – comprar cannabis de fontes ilícitas. E, em Nova York, que legalizou a maconha não médica em 2021, apenas quatro das mais de 1 400 lojas existentes são licenciadas.
Como estão os números de usuários após a legalização? As teorias de política pública são geralmente baseadas no conceito de que aumentar a disponibilidade e reduzir o preço de uma substância leva a maior consumo. Ambos aconteceram com a legalização nos Estados Unidos. Os preços da maconha caíram em média 20% e o número de lojas se proliferou. Os resultados até agora dos estudos de prevalência mostram um quadro multifacetado.
De forma geral, não parece ter havido uma explosão no aumento de uso, como se temia. Os dados apontam que o consumo está crescendo entre adultos, particularmente entre os jovens adultos. Entre os adolescentes, o consumo não aumentou, mas também não diminuiu (em contraste com outras drogas, como o álcool e tabaco).
É verdade que os números de usuários no Canadá e nos EUA, países que fazem pesquisas populacionais anualmente, têm sido altos há décadas, bem antes da legalização. Em 2020, nos EUA, 10% dos adolescentes (12-17 anos) e 34% dos jovens adultos declaravam ter usado maconha no ano anterior.
No Canadá, usa-se mais ainda. Metade dos jovens de 20 a 24 anos declarava ter usado maconha no último ano, assim como 37% dos adolescentes entre 16 e 19 anos. Além disso, 19% dos canadenses que usam maconha fumam todos os dias. Há também algumas evidências de aumento de alguns prejuízos relacionados ao uso de cannabis, como na incidência de pacientes sendo atendidos nos pronto-socorros devido a questões relacionadas ao consumo.
A percepção do risco do uso de maconha – importante fator para as pessoas rejeitem ou não o uso – é baixa. Equivocadamente, as pessoas se convenceram de que a maconha nunca não faz mal (e muitos acham que quase sempre faz bem).
A pesquisa Canadian Cannabis Survey de 2022 mostra que, entre os usuários, apenas 7% acreditavam que o consumo de maconha piorava sua performance no trabalho ou na escola e só 5% relatavam que o uso prejudicava sua relação com o parceiro afetivo ou com familiares. Essa percepção de risco menor começou bem antes da legalização.
Um estudo americano com mais de 600 mil indivíduos apontou que, entre 2002 e 2012, diminuiu de mais de metade para 40% o número de pessoas que achavam que o uso de maconha era muito arriscado, e dobrou o de pessoas que consideravam não haver risco algum no consumo.
A professora Beatriz Carlini, diretora do Programa em Educação e Pesquisa em Cannabis da Universidade de Washington, em Seattle, conta que o processo de legalização da maconha foi , na grande maioria dos estados, decidido nas urnas via plebiscito eleitoral e centrado na retórica de justiça social e racial, de evitar a prisão desproporcional de minorias, além de racionalizar o uso dos recursos da polícia.
O movimento anterior, de legalização da maconha medicinal, veio do movimento civil pelo direito de reduzir a dor e o sofrimento de pacientes, que não respondiam a medicamentos tradicionais prescritos.
O processo a que estamos assistindo em tempo real mostra acertos e erros. Os diferentes modelos de legalização podem dar dicas de caminhos a seguir (ou não). Nosso vizinho, o Uruguai, que se tornou o primeiro país a legalizar a maconha em 2013, usa um modelo baseado no controle governamental das produções de alta escala e desencoraja a participação e lucros das grandes companhias comerciais. Esse ponto é importante.
Legalizar não deveria significar, segundo a professora Carlini e inúmeros outros pesquisadores e ativistas, exploração comercial. Uma das repercussões mais problemáticas da legalização nos EUA e no Canadá, que abriram o mercado para a chamado “Big Cannabis” (grandes empresas interessadas em altos dividendos) foi tratar a maconha como um produto como outro qualquer, envolvendo publicidade agressiva, ofertas de descontos, produtos de alta potência (grande concentração de THC) e embalagens coloridas e chamativas que lembram balas para crianças.
O universo da maconha se expandiu e ficou mais complexo. Somando-se às discussões científicas a questão política e comercial, vemos que a confusão está formada. O debate público frequentemente é intenso, por isso informação é central.
No próximo artigo sobre o tema, vou tratar dos efeitos negativos causados pelo consumo de maconha e de evidências relacionadas ao tratamento com cannabis medicinal.
Fonte: Revista Veja
Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora ligada à Fiocruz. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto) e foi consultora da OMS e professora da Unifesp e da Universidade Colúmbia (EUA)