O que hoje denominamos de História Antiga foi, no princípio, um movimento cultural e literário de produção de memória a partir de textos e objetos. Após a dissolução do Império Romano ocidental, a lembrança de um passado pré-cristão foi aos poucos se dissolvendo. Os vestígios materiais do Império eram como ruínas na paisagem, espaços da vida cotidiana, mas não lugares da memória. Na própria Roma, que fora capital do Império, o fórum era um lugar para o pastoreio de animais e as antigas construções e estátuas eram dissolvidas em grandes fornos para produzir cal. O passado, mesmo o bíblico, parecia comprimido num eterno presente, sem profundidade ou mudança.
Testemunhos dessa visão do passado como imutável são as ilustrações de manuscritos medievais que mostram antigos personagens e feitos com a roupagem e os costumes de sua própria época. Mas o passado não fora simplesmente anulado. Por um lado, ele sobrevivia como trabalho morto, ou seja, como uma série de conhecimentos acumulados que nunca se dissolveram: na arte de forjar o ferro, na agricultura, na arquitetura, nos objetos artesanais da vida cotidiana, nos costumes. E isso, não apenas no que viria a ser a Europa Ocidental, mas por todo o espaço que fora ocupado pelo antigo Império Romano: tanto nas terras do Islã, quanto naquelas do Império de Bizâncio. Por outro lado, esse trabalho morto sobrevivia também como textos escritos, reproduzidos nos códices medievais e mantidos em diversas bibliotecas de particulares, de monastérios, ou mantidos na corte de Constantinopla, em grego, ou ainda preservados em árabe, circulando, sobretudo, no Mediterrâneo.
A criação do Antigo
A partir do século xii, esses textos passaram a ser cada vez mais procurados e difundiu-se, a partir da Itália, a ideia de que eles representavam algo diferente da cultura contemporânea: eram a herança escrita dos antigos. Muitos pensadores, poetas, artistas e curiosos da natureza começaram a debruçar-se sobre esses textos, extraindo os livros originais das grandes compilações manuscritas. A ideia de que tinha havido um mundo “antigo”, anterior ao cristianismo, com uma cultura rica e singular, difundiu-se, aos poucos, pelas cortes europeias e pelos literatos. Essa cultura laica, livre do domínio da Igreja, parecia muito adequada aos novos tempos.
Fornecia novos padrões estéticos, novas formas de pensar as relações entre sociedade e Estado, de valorizar a riqueza e o comércio, de projetar novos futuros. Com a divulgação da imprensa, no século xiv, os grandes livros do “mundo antigo” foram reeditados e voltaram à vida. Autores como Homero, Virgílio, Aristóteles, Plutarco, Tito Lívio, Tácito e muitos outros passaram a fazer parte da cultura erudita por quase todo o oeste da Europa. A queda de Constantinopla para os turcos, no século xv, acentuou a redescoberta de textos gregos, ao mesmo tempo que colocou, de forma dramática, a oposição entre a Europa cristã e clássica e o mundo islâmico.
As antigas ruínas, às quais não se prestava atenção, passaram a ser consideradas testemunhos desse mundo “antigo”. Edifícios foram descritos ou desenhados, estátuas e pinturas foram resgatadas, inscrições foram copiadas, moedas foram colecionadas e formaram-se as primeiras coleções de objetos “antigos”. O impacto na cultura erudita, dos sábios e das cortes europeias, foi imenso. É a esse processo que se dá o nome equivocado de Renascimento. Não foi um renascer passivo, mas uma reconstrução profunda da memória, com objetivos bem presentes: rejeitar uma parte do passado mais recente, definindo-o como “Idade Média” ou “Idade das Trevas”, para construir uma nova identidade, voltada para o presente e para o futuro.
Todos os grandes cientistas e artistas da Europa moderna viveram intensamente esse processo e contribuíram para ele: Copérnico, Michelangelo, Leonardo da Vinci, Cristóvão Colombo, Newton, Galileu, Thomas Hobbes, Camões, Shakespeare seriam impensáveis sem os “antigos”. E a lista é infindável. A opção de reconstruir essa memória deixou uma marca profunda no que viria a ser a moderna concepção de Ocidente. A criação do “antigo” foi uma verdadeira revolução cultural que, aos poucos, atingiu todas as camadas da população. O “mundo antigo” tornou-se, assim, um participante ativo e necessário de outras revoluções: políticas, sociais e econômicas, cujas consequências sentimos até hoje.
A redescoberta do mundo dos antigos não conduziu, de imediato, à produção de uma História Antiga como a entendemos hoje. Um respeito profundo pelos textos em grego e latim, assim como pela Bíblia, impedia a leitura crítica dos textos antigos. Os famosos Discursos sobre a História Universal, escritos pelo francês Jacques Bossuet no século xvii, começavam com Adão e terminavam com Carlos Magno, com o qual findava a História Antiga. Não havia, ainda, uma História científica. Esta começou a ser firmar entre os séculos xvii e xviii. Primeiramente como uma batalha cultural: a dos modernos contra os antigos. Esta se deu em todos os campos do conhecimento, das ciências e das artes. Foi o período da cultura europeia que se costuma chamar de Iluminismo.
Saiba mais sobre no livro História Antiga que faz parte da coleção História na universidade
Embora seja uma disciplina consolidada em muitas universidades no mundo, não há uma definição explícita do que seja a História Antiga. Na prática, tanto no ensino como na pesquisa, a História Antiga costuma estudar os primórdios do Ocidente, após uma pré-história vaga e geral. Não é a História Antiga do mundo, portanto, mas a História de um recorte bem específico do passado: o das origens do Ocidente. Grécia e Roma ganham destaque especial. Além do conteúdo, outros temas relacionados à História Antiga são alvo de questionamento por parte dos historiadores, como a maneira de ensinar essa disciplina. É preciso reescrever essa história de um modo que faça sentido ao presente e que seja explícito. Embora não se possa mais considerar a História Antiga o início de uma História Universal, as realizações humanas que se acumularam nesse pedaço do globo – o espaço do Mediterrâneo entre os século X a.C. e V d.C. – são fundamentais para entendermos como o mundo contemporâneo se tornou possível. É com esse novo olhar que o autor, historiador especialista na área e professor da Universidade de São Paulo, analisa essa parte fundamental da História mundial.
Norberto Luiz Guarinello é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de História Antiga do Departamento de História da mesma instituição. Pela Contexto é autor dos livros História Antiga e História da Cidadania.