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“A guerra convencional está morta” | Alessandro Visacro

O conflito na Ucrânia revela aquilo que a grande maioria das pessoas é incapaz de entender: “a guerra convencional está morta”.

Analistas, obcecados pela exuberante brutalidade da guerra, mostram-se incapazes de compreender os conflitos armados além das imagens de tanques, aviões de caça e explosões de artilharia. Eles se mantêm circunscritos a uma perspectiva meramente tática da luta e, por conseguinte, não conseguem fazer distinção alguma entre “batalha” e “guerra”. As agências de notícias, o grande público e, não raro, os próprios formuladores da política nacional, naturalmente, aderem a esse tipo de narrativa míope e irracional. As discussões em torno do conflito na Ucrânia têm demonstrado, de forma inequívoca, a necessidade premente de resgatarmos o pensamento estratégico.

"A guerra convencional está morta" | Alessandro Visacro
(Foto: Reprodução)

Guerra é política armada. Nada além disso! Eis o axioma legado da memorável obra de Clausewitz, publicada no final do século XIX. Obviamente, política não se faz por meio de um único instrumento de poder, pois a consecução dos objetivos nacionais não pode prescindir da orquestração de todas as capacidades coercitivas e não coercitivas disponíveis no Estado e na sociedade.

A simples aplicação do poderio bélico convencional, como os russos estão fazendo na Ucrânia, não quer dizer, necessariamente, “guerra convencional”. Porém, a grande maioria das pessoas parece não entender a diferença! Não se trata de uma mera questão semântica. Pelo contrário, denota uma profunda incompreensão da natureza da guerra.

A guerra convencional é uma formulação teórica do Ocidente, ou melhor, é um constructo decorrente do atrofiado pensamento estratégico ocidental. Ela se apoia em três preceitos fundamentais: (1) a segregação de meios militares e não militares durante o processo de consecução política, atribuindo ao poderio bélico convencional o status de último e decisivo recurso à disposição do Estado; (2) o ideal vestfaliano de uma ordem internacional centrada no protagonismo exclusivo do Estado-nação, imputando importância marginal aos atores armados não estatais, como se eles representassem uma ameaça de menor monta ou pudessem ser apartados do espectro de conflitualidade; e (3) o paradigma da guerra industrial entre Estados – do qual Napoleão foi seu principal artífice e Clausewitz, seu maior ideólogo – ou seja, conflitos protagonizados por grandes exércitos de conscrição em massa, armados e equipados com tecnologia advinda da Revolução Industrial, digladiando-se em batalhas campais de enormes proporções, como aconteceu durante as duas conflagrações mundiais na primeira metade do século XX.

As operações militares em curso na Ucrânia, definitivamente, não correspondem ao modelo de conflito descrito no parágrafo anterior. Sua compreensão exige uma análise que transcenda o enfoque tático do campo de batalha, exclua os vieses e atenha-se à essência política subjacente à própria natureza da guerra.

O principal objetivo político de Moscou é restaurar parte significativa do poder que o Império Russo e a antiga União Soviética exibiam nos séculos XIX e XX, respectivamente. O presidente Vladimir Putin reivindica a primazia natural, que ele acredita ser devida à “Mãe Rússia” – condição que lhe foi temporariamente “usurpada”, após o fim da Guerra Fria. Para tanto, há que se degradar a consagrada hegemonia norte-americana e promover o advento de uma nova ordem multipolar ou “policêntrica”. Alguns observadores consideram que, depois de persistentes esforços e muitos percalços ao longo das duas últimas décadas, Moscou está perto de alcançá-lo.

O objetivo estratégico do Kremlin em relação à Ucrânia é recolocá-la dentro de sua tradicional esfera de influência, impedindo um possível alinhamento de Kiev com a Europa ocidental e, sobretudo, prover para si profundidade estratégica em face de uma ameaçadora OTAN, que se expande de forma contínua para o leste, reavivando os fantasmas do Grande Armée de Napoleão e da Wehrmacht de Hitler.

Os objetivos operacionais atribuídos às forças armadas russas no teatro de operações ucraniano resumem-se à falaciosa retórica de “desnazificação”, ou seja, “troca de regime”, a fim de permitir a instauração de um governo títere em Kiev; e “desmilitarização”, que tem por propósito subjugar as forças militares inimigas e assegurar, direta ou indiretamente, a porção territorial que lhe confere a tão necessária profundidade estratégica.

A guerra na Ucrânia não começou quando os tanques russos irromperam a linha de partida, na madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022. Ela teve início em 2004, durante as intensas manifestações que ficaram conhecidas como Revolução Laranja. Acirrou-se, nos anos de 2013 e 2014, com a EuroMaidan, a anexação da península da Crimeia e a sublevação na bacia do rio Donetz. Certamente, não terminará com a imposição de um cessar fogo.

A decisão de aplicar poderio bélico massivo em uma campanha militar que Moscou espera vencer rapidamente é, apenas, um recurso dentre o enorme portfólio de ferramentas que o Kremlin vem, até o momento, manejando habilmente na defesa e promoção de seus interesses vitais. Porquanto, o uso do instrumento militar, na perspectiva russa, subordina-se a um arranjo político e estratégico multifacetado que lhe dá coerência e propósito.

Nesse contexto, é importante destacar que, desde 2004, Moscou vem empregando uma enorme multiplicidade de meios para levar adiante uma abordagem estratégica alternativa, flexível e eclética. As operações de combate na vasta planície ucraniana são apenas um recurso no diversificado portfólio russo, que inclui: diplomacia; atividades cibernéticas; campanhas de propaganda e desinformação; coerção econômica; inovação tecnológica militar; dissuasão nuclear; emprego de mercenários; uso de forças não convencionais; guerras por procuração; guerra jurídica etc. Convém salientar que o Kremlin exibe uma visão sistêmica acurada, dentro da qual, a Ucrânia é apenas um importante teatro de operações. A reinserção política e militar da Rússia no Oriente Médio e no Mediterrâneo oriental, a partir dos conflitos da Síria e da Líbia, por exemplo, denotam a grande flexibilidade estratégica dos seus líderes.

A dependência europeia de commodities russas; a articulação diplomática com a China; a capacidade de explorar as diferentes percepções que vigoram no seio da OTAN em relação à ameaça que a Rússia representa; o intenso uso de operações de influenciação e ataques cibernéticos; o emprego de ferramentas de guerra não convencional (forças irregulares locais, companhias militares privadas, proxy warfare, little green men etc.) criaram a janela de oportunidade para que Moscou se valesse do seu poderio bélico convencional em uma campanha militar massiva visando a conquistar um objetivo limitado, de forma rápida, sem desencadear uma escalada que culmine com uma guerra total contra a OTAN. Ao menos esse é o plano.

É possível que o estadista alemão Gustav Stresemann recomendasse mais cautela a Putin. Talvez, seus objetivos políticos e estratégicos pudessem ser alcançados com mais paciência, sem uma iniciativa tão ousada. Se, por ventura, as defesas ucranianas não colapsarem, como espera o Kremlin, os dividendos da “operação militar especial” autorizada por Putin podem se tornar bastante controversos. Mas, o pragmático e resoluto líder russo decidiu apostar no momentum que seu obstinado realismo político criou. Ademais, sob a perspectiva de Moscou, a iminente ameaça representada pelo acordo de assistência de segurança firmado, em 2021, entre Washington e Kiev, exigia uma incisiva demonstração de força.

Decerto, os combates travados na Ucrânia, hoje, não equivalem à gigantesca campanha empreendida pelo Grupo de Exércitos Sul, entre 1941 e 1944, no espaço geográfico compreendido entre os rios Dniestr e Volga. Dentre as muitas diferenças, destaca-se que, durante a Segunda Guerra Mundial, existia um nexo lógico inquebrantável que vinculava a vitória tática na batalha ao êxito estratégico da campanha militar e, por conseguinte, à consecução do objetivo político da guerra. Isso já não condiz com a realidade.

Ao contrário da perspectiva oferecida pelas guerras convencionais, um eventual êxito da campanha militar na Ucrânia não corresponderá necessariamente à vitória no conflito. Ele, tão somente, abrirá um leque de opções estratégicas passíveis de serem exploradas pelo Kremlin. Contudo, cria também uma série de desafios que, presumivelmente, Moscou levou em consideração ao longo de seu processo decisório, tais como: exacerbar o temor e a aversão à diplomacia russa nas ex-repúblicas soviéticas; acirrar desnecessariamente a competição com o Ocidente; revitalizar o propósito da OTAN; induzir os países europeus a diversificarem suas matrizes energéticas de modo a se tornarem menos dependentes das importações de commodities russas e, portanto, mais resilientes à coerção econômica; além da possibilidade de dar início a uma prolongada guerra de resistência nos territórios ucranianos ocupados – embora Moscou não demonstre a mesma dificuldade que o Ocidente para debelar insurgências nativas.

Nesse contexto, as poderosas forças da OTAN, que se mantêm fiéis à visão ortodoxa da guerra convencional, permanecem inertes e impotentes, paralisadas por inúmeros fatores que lhes retiraram a liberdade de ação. Por ora, é possível que a aliança ocidental forneça algum tipo de apoio logístico ou realize ações de inteligência, atividades cibernéticas, operações de informação e, até mesmo, operações especiais de escopo limitado. Mas, nada muito diferente disso. Em contraste, a massiva campanha militar da Federação Russa insere-se em abordagens estratégicas alternativas, que oferecem uma perspectiva bem mais sofisticada do que aquilo que alguns autores ocidentais denominam “guerra híbrida”. Essa discrepância, portanto, corrobora a assertiva do professor Sean McFate, da Universidade Nacional de Defesa, em Washington: “a guerra convencional está morta”.

Impregnados de uma perspectiva ocidental do conflito armado, nossos analistas abdicaram da construção de uma base de pensamento estratégico genuinamente autóctone. Tornamo-nos incapazes sequer de entender a verdadeira natureza da guerra ou de fazer distinção entre guerra e batalha. Sob o argumento da invasão da Ucrânia, não faltarão vozes evocando a necessidade de reaparelhamento das forças armadas, reavaliação do orçamento de defesa e investimentos mais expressivos na indústria bélica. Tudo isso é válido, sem dúvida! Mas, somente, se formos verdadeiramente capazes de orientar nossas ações políticas e estratégicas segundo nossas próprias idiossincrasias. Algo que, inadvertidamente, abrimos mão em decorrência da obtusa fidelidade ao anacrônico modelo ocidental.


Alessandro Visacro – Autor dos livros “Guerra Irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história”, “A Guerra na Era da Informação” e “Lawrence da Arábia”.

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