Fechar

A Europa Central está de volta!

Em 1989, quando revoluções democráticas colocaram fim à experiência socialista na região, a frase era repetida à exaustão em países como Polônia, Hungria, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental. Ecoava, de certo modo, a euforia vitoriosa que marcou o Ocidente no momento em que a Guerra Fria chegou ao fim com a derrota da União Soviética, ao mesmo tempo que sintetizava as expectativas e as promessas de reunificação do Velho Continente depois de décadas de separação.

No século XXI, a frase ainda reverbera e o retorno da Europa Central parece se impor mais uma vez. Os noticiários estão repletos de manchetes sobre a região, agora, no entanto, a euforia de 1989 cedeu lugar a outras entonações: ainda no começo do século, pouco após a entrada de vários países da região na União Europeia (2004), vimos a crise econômica de 2008 atingir em cheio a Europa Central, levando muitos países à recessão e a uma grave crise migratória.

Simultaneamente, a emergência de regimes de extrema direita, em particular as experiências da Hungria e da Polônia, chamou a atenção de observadores políticos para a ascensão e os modos de operar do que muitos denominaram “novas direitas”, “direitas populistas” ou, ainda, “democracias iliberais”. Depois, a partir de fevereiro de 2022, novamente os olhos do mundo se voltaram para a região, quando teve início a invasão da Ucrânia pela Rússia e começou a guerra entre os dois países.

Todos esses acontecimentos evidenciam a importância estratégica da Europa Central no cenário político global, resultando em um crescente interesse pela região na opinião pública internacional, bem como na academia. Não obstante, trata-se de uma região ainda mal conhecida, por vezes considerada uma outra Europa, exótica, enigmática, composta por pequenos países de línguas indecifráveis e hábitos desconhecidos. Mas, se é verdade que podemos observar um interesse crescente por compreender os processos políticos e históricos, bem como o papel nas relações internacionais e na economia global dessa região, ela permanece, de certo modo, incógnita, resumida às ideias de excentricidade, mistério e atraso.

A Europa Central está de volta!

A proposta deste livro é olhar com atenção para a Europa Central, buscando analisar sua rica experiência histórica na contemporaneidade. Da mesma forma, propõe compreender os processos de construção das identidades nacionais e regionais e dos imaginários sobre a região.

Mas, o que queremos dizer quando falamos de Europa Central? Trata-se de uma região difícil de nomear e localizar. Como veremos, as disputas políticas e de narrativas, bem como suas complexas experiências históricas, levaram a sobreposições de nomes e definições – Europa Oriental, Leste Europeu, Europa Central, Mitteleuropa –, os quais nunca eram inocentes. Antes, remetiam a projetos políticos bem definidos e que marcaram, a ferro e sangue, a história da região.

Alguns autores empregam o termo Europa Central como sinônimo dos Estados sucessores da Monarquia Austro-Húngara. Trata-se de opção legítima e estabelece um recorte preciso, abarcando países como Polônia, Hungria, República Tcheca, Eslováquia, Croácia, Sérvia, Eslovênia, dentre outros. Mas deixa de fora, por exemplo, a Bulgária, os três países bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia –, partes da Romênia, da Ucrânia e mesmo da Polônia, dividida desde o século XVIII entre os Impérios Russo, Prussiano e Austríaco.

Neste livro, embora os Estados sucessores da Monarquia Austro-Húngara possuam papel de destaque, utilizarei a expressão Europa Central de forma mais ampla, para me referir à região, muito diversificada, localizada entre o mar Báltico no norte e as margens ocidentais do mar Negro e Adriático no sul; bem como entre a Alemanha e a Áustria, a oeste, e a Rússia, a leste, cujas nações compartilharam, na modernidade, a experiência das presenças dos Impérios Habsburgo, Otomano, Alemão, Russo e, no século XX, da Alemanha nazista e da União Soviética em seus respectivos territórios.

A obra trata, portanto, de países muito diversos entre si, os quais, no entanto, têm bastante em comum. Analisa a história de sociedades que, no século XX, foram marcadas pela força da questão nacional, pela fluidez das fronteiras, por disputas entre potências, por autoritarismo, limpezas étnicas e genocídios, guerras mundiais e civis. Mas também apresenta as tentativas de construção de caminhos democráticos e de uma cultura moderna e pulsante. Mostra as formas de resistência aos ocupantes – fossem eles Habsburgo, otomanos, nazistas ou soviéticos –, o poder dos movimentos sociais e a construção de redes de solidariedade – algumas vezes transnacionais – que ajudaram a denunciar a dominação e sobreviver à opressão.

Em função da pluralidade de experiências, foi preciso fazer determinadas escolhas. Como se trata de uma região que, no período considerado, esteve em grande parte sob o domínio de impérios estrangeiros, uma das principais preocupações é abordar os eventos históricos não a partir dos impérios dominantes, mas dos que sofreram a dominação. Nesse sentido, embora o livro remeta às experiências da Áustria, da Alemanha nazista, da União Soviética e, em menor medida, do Império Otomano, estes não são o objeto principal, ainda que importantes.

O leitor observará, sobretudo, que alguns países possuem maior centralidade na narrativa que outros: Polônia, Hungria, Tchecoslováquia e Iugoslávia recebem mais destaque que os três Estados bálticos, a Bulgária, a Albânia e mesmo a Romênia. A Ucrânia e a Bielo-Rússia são consideradas com menos ênfase, uma vez que sua história esteve muito vinculada ao Império Russo e à União Soviética, ao longo de grande parte do período abordado.

Tais escolhas levam em conta a centralidade de determinados eventos para a história da região e do continente, e o papel desempenhado por esses Estados para a história da Europa de maneira geral.

Embora comece por acontecimentos da segunda metade do século XIX, o livro se concentra nos eventos que ocorreram ao longo do breve, porém conturbado, século XX, avançando até os primeiros anos do XXI.

O fim do século XIX encontrou a Europa Central passando por interessantes processos de modernização, ao mesmo tempo que cresciam as demandas por emancipação política. O Império Austro-Húngaro dominava boa parte da região, que também sofria com a presença e os avanços dos Impérios Russo, Alemão e Otomano. Nenhum desses impérios resistiria à catástrofe da Grande Guerra, entre 1914 e 1918, como a Primeira Guerra Mundial foi denominada pelos seus contemporâneos, dando origem a uma pluralidade de pequenos países independentes e modificando de forma radical o mapa do Velho Continente.

Muitos dos recém-criados Estados cairiam sob domínio nazista – ora resistindo, ora colaborando –, a partir de 1938, tendo suas fronteiras bastante alteradas pela presença alemã e pela eclosão da Segunda Guerra Mundial. A situação seria mais uma vez modificada com o fim do conflito em 1945 e a emergência da Guerra Fria, a partir de 1947. Desde então, esses países passaram a compor a zona considerada de influência soviética. Entretanto, em 1989-91, uma onda de revoluções democráticas varreu a região e, outra vez, ocorreu uma profunda alteração no mapa do continente. Ao longo da década de 1990, o surgimento e o desaparecimento de nações – em particular, as formas violentas que marcaram alguns casos – transformaram mais uma vez e de modo profundo a região e todo o continente europeu.

Em conferência proferida em 1993, na Universidade da Europa Central, em Budapeste, o historiador britânico Eric Hobsbawm – nascido em 1917 – chegava à conclusão de que “apenas 6 dos 23 Estados que agora preenchem o mapa entre Trieste e os Urais existiam na época do meu nascimento”. Entre 1993, quando Hobsbawm proferiu a conferência, e 2024, outros Estados surgiram, após o fim das guerras na Iugoslávia e a declaração de independência do Kosovo, em 2008.

O historiador também falava da fluidez das fronteiras, sempre em constante movimento, demonstrando como não era raro que uma pessoa nascida durante a Grande Guerra tivesse possuído documentos de identificação de três ou quatro diferentes Estados nacionais: “uma pessoa da minha idade de Lemberg ou Czernowitz viveu sob quatro Estados, sem contar as ocupações durante períodos de guerra”. Hobsbawm utilizou os nomes alemães das cidades de Lviv e Chernivtsi, ambas territórios da Ucrânia independente desde 1991. No caso de Lviv, ao longo do século XX, ela pertenceu primeiro à Áustria-Hungria (Lemberg), depois, à Polônia (Lwów), em seguida à União Soviética (Lvov) e, por fim, à Ucrânia (Lviv). Algo similar se passou com Chernivtsi, que compôs o território da Áustria-Hungria (Czernowitz), em seguida da Romênia (Cernăuți), da União Soviética (Chernovtsy) e agora da Ucrânia (Chernivtsi).

As percepções a respeito das constantes mudanças de fronteiras na região compõem também parte da cultura popular local. Algumas anedotas que circulam pelos diversos países retratam, com autoironia, tal experiência, como aquela em que São Pedro, guardião das portas do céu, entrevista um falecido, recém-chegado da cidade de Mukachevo, na região da Transcarpátia:

− Nascimento?
− Áustria-Hungria.
− Onde frequentou a escola?
− Tchecoslováquia.
− Casou-se em?
− Hungria.
− Onde os filhos nasceram?
− Terceiro Reich.
− E seus netos?
− Na União Soviética.
− Onde você morreu?
− Ucrânia.
− Uau, você viajou muito!
− Bobagem, nunca saí de Mukachevo.

A constante transformação de fronteiras, resultando nas alterações de nomes, torna, muitas vezes, a história da Europa Central de difícil apreensão para o leitor brasileiro. Não obstante, as mudanças – de nomes, línguas e fronteiras – dizem respeito não apenas à complexidade e à pluralidade de uma região conhecida ainda de modo impreciso por nós, mas também ao fato de que elas muitas vezes se deram a partir de processos permeados por intensa violência política e social, tão recorrentes na história do século XX. Conhecê-las é, portanto, fundamental. É uma forma de apreender a riqueza de uma região que, para o bem e para o mal e, por vezes, discretamente, continua moldando a experiência da Europa contemporânea.

O livro está dividido em seis capítulos: o primeiro, “O enigma da Europa Central”, discute os conceitos de Europa Oriental, Leste Europeu e Europa Central. A que projetos políticos cada uma dessas noções se vinculava e como as representações sobre a região na cultura popular ajudaram a conformar determinados estereótipos, ainda muito comuns no imaginário ocidental sobre a Europa Central? O capítulo “Europa Central fin-de-siècle: da Belle Époque à eclosão da Grande Guerra” aborda a região a partir do último terço do século XIX, até o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Nesse capítulo, são consideradas principalmente as dinâmicas políticas e sociais no seio do Império Austro-Húngaro, em virtude, inclusive, de sua abrangência e importância na região. A cultura e a sociedade na transição dos séculos XIX e XX, a chamada Belle Époque, o fortalecimento da questão nacional, seus projetos e contradições também têm vez.

O capítulo “Guerra, paz e construção nacional” se concentra na Grande Guerra e nos impactos do conflito na região – o desmantelamento dos grandes impérios, os difíceis processos de (re)construção nacional e as conturbadas transições para a paz.

O capítulo “Sair da guerra, entrar na guerra: a Europa Central entre os anos 1920 e 1940” trata do período entreguerras, quando as nações da Europa Central tiveram que lidar com os difíceis processos de consolidação dos Estados nacionais, em um continente marcado pelos traumas da Grande Guerra, pela desagregação de impérios tradicionais, pelo impacto da Revolução Russa, mas no qual também os processos de violência política continuavam ocorrendo. Aborda ainda a Segunda Guerra Mundial a partir do palco centro-europeu: o Pacto Germano-Soviético, a ocupação da Polônia e a declaração de guerra ao Eixo, os planos nazistas de colonização do Leste, o sistema de campos de concentração e de extermínio, o Holocausto.

No capítulo “A Europa Central em tempos de Guerra Fria”, observamos os difíceis processos de transição para a paz na região, a permanência da violência e das limpezas étnicas no imediato pós-guerra. Em seguida, são considerados os caminhos para a construção do socialismo na região em um contexto de emergência da Guerra Fria: da política de frentes amplas nos primeiros anos do pós-guerra à adoção do modelo inspirado na experiência soviética; os expurgos, a desestalinização, as resistências e os projetos de reforma do socialismo.

A Europa Central está de volta!

O capítulo “Adeus, Lenin! Das dissidências ao socialismo à integração europeia” trata dos processos de desagregação do socialismo na região e das formas de transição democrática: os diferentes caminhos das oposições e as dissidências, as revoluções de 1989, as guerras na Iugoslávia, as difíceis transições das economias planificadas para economias de mercado e a entrada para a União Europeia em 2004.

Por fim, um breve epílogo, “A Europa Central no limiar do século XXI”, discute os rumos e as expectativas em relação à Europa Central em nosso século.

Sejam quais forem os horizontes que se descortinarão para a região no século XXI, serão certamente marcados pelas complexas tradições históricas que conheceremos a partir de agora.


Janaina Martins Cordeiro é professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense e doutora em História pela mesma universidade. Pesquisadora do CNPq e da Faperj, é autora de diversos livros, capítulos e artigos.

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.