Em julho de 1938, o cônsul do Brasil em Budapeste (Hungria), Mário Moreira da Silva, enviou ao ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, uma circular secreta em que informava ter recusado a concessão de vistos a 47 pessoas “declaradamente de origem semita” (judeus) que buscavam migrar para o Brasil.
Eles tentavam fugir enquanto o governo húngaro, aliado da Alemanha nazista, punha em marcha uma série de políticas antissemitas – que, seis anos depois, culminariam com o envio de meio milhão de judeus húngaros para campos de extermínio.
O cônsul em Budapeste já havia se posicionado contra a entrada de judeus no Brasil. Em ofício enviado ao ministro meses antes, ele os chamara de “assaz (muito) perniciosos” e “inassimiláveis, que só sabem trabalhar – sem o menor escrúpulo e só visando o lucro – como intermediários de negócios, nada produzindo de útil”.
Não era uma posição isolada no governo. Documentos diplomáticos compilados por Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da USP, mostram que o Brasil rejeitou ao menos 16 mil pedidos de visto feitos por judeus que fugiam do Holocausto ou tentavam reconstruir suas vidas após a Segunda Guerra.
Os documentos – que estão sendo incorporados ao Arquivo Virtual Sobre Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah) – jogam luz sobre um lado pouco conhecido da história da imigração no Brasil.
Formação étnica do Brasil
Segundo Tucci, as recusas de visto a judeus seguiam ordens do alto escalão do governo. A partir de 1937, o Ministério das Relações Exteriores emitiu ao menos 26 circulares secretas impondo barreiras à entrada do grupo, considerado indesejável para a formação étnica do povo brasileiro numa época em que o Brasil estimulava a migração de europeus brancos e cristãos. Restrições semelhantes foram impostas a estrangeiros negros e asiáticos.
No caso dos judeus, porém, as barreiras afetavam um grupo que se via cada vez mais acuado por medidas discriminatórias em boa parte da Europa. Calcula-se que cerca de 6 milhões de judeus tenham sido mortos pela máquina de guerra nazista, o maior genocídio do século 20.
As regras que barravam judeus vigoraram mesmo após o Brasil declarar guerra à Alemanha e enviar soldados para a Itália, só perdendo validade no fim do governo de Eurico Gaspar Dutra, em 1950, quando os horrores do Holocausto já haviam sido amplamente difundidos.
“Os documentos derrubam o mito de que o Brasil sempre recebeu imigrantes de portas abertas e reforçam a postura colaboracionista do governo Vargas com a política antissemita da Alemanha”, afirma Tucci à BBC News Brasil.
Segundo ela, o governo impunha restrições a judeus e outras minorias por meio de documentos secretos enquanto, no exterior, buscava apresentar o Brasil como um país “com projetos humanitários e salvacionistas”. Uma circular que tratava do tema ordenava que a recusa de vistos a judeus deveria “ser justificada sem qualquer referência à questão étnica”.
Autora de vários livros sobre o antissemitismo no Brasil, Tucci estuda os documentos desde 1995, quando o Itamaraty abriu seu acervo sobre o tema. Ela diz acreditar que os números de vistos recusados a judeus tenham sido muito superiores aos que já contabilizou.
Judeus ‘subversivos’
A primeira das circulares secretas listava uma série de regras para barrar “numerosas levas de semitas, que os governos de outras nações estão empenhados em afastar dos respectivos territórios”.
A justificativa, segundo o ministério, era impedir a entrada de migrantes que buscavam, “numa inadmissível concorrência ao comércio local e ao trabalhador nacional, absorverem, parasitariamente, (…) uma parte apreciável de nossa riqueza, quando, além disso, não se entregam, também, à propaganda de ideias dissolventes e subversivas”.
A circular determinava, entre outros pontos, que não fossem dados vistos a judeus, exceto nos casos em que tivessem cônjuges brasileiros, possuíssem bens no país, pretendessem viajar a turismo ou tivessem “notória expressão cultural, política e social”. As mesmas restrições não se aplicavam a europeus cristãos.
Caso o consulado suspeitasse que um judeu tentava se passar por cristão para obter o visto, poderia pedir sua certidão de batismo e suspender o processo até que, “por meio de investigação, se consiga esclarecer a dúvida”. Segundo a circular, as regras haviam sido elaboradas pelos ministérios das Relações Exteriores e do Trabalho e aprovadas pelo presidente Getúlio Vargas.
Na época, outros órgãos do Estado também adotavam políticas racistas. No artigo Discriminação e Intolerância: os indesejáveis na seleção do Exército brasileiro, o pesquisador do Arquivo Histórico do Exército (AHEx) Fernando da Silva Rodrigues cita normas que impediam o acesso de judeus, negros e muçulmanos às escolas que formavam os oficiais da corporação. As regras foram definidas em 1937 pelo então ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, e valeram até 1946.
Deportação de Olga Benário
Muitos historiadores já analisaram os laços entre o governo Vargas e o regime nazista na Alemanha, quando os dois países mantinham acordos secretos para a troca de informações sobre militantes comunistas. A cooperação mais célebre envolveu a deportação pelo Brasil da judia alemã Olga Benário, cônjuge do líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes. Devolvida à Alemanha, ela foi presa e executada numa câmara de gás no campo de Bernburg, em 1942.
Foi só após sucessivos ataques de submarinos alemães e italianos à Marinha Mercante brasileira e sob forte pressão dos EUA que o país rompeu os laços diplomáticos com as potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), em 1942, unindo-se dois anos depois aos Aliados nos campos de batalha.
Os documentos do governo brasileiro indicam que a afinidade entre o governo Vargas e a Alemanha nazista ia além da oposição ao comunismo – e que muitos altos diplomatas brasileiros tinham visões antissemitas.
Tucci diz que o próprio chanceler Oswaldo Aranha, homenageado em Israel por seu papel na Assembleia Geral da ONU que resultou na criação do país, em 1947, expôs ideias antissemitas e concebeu parte das ordens secretas que barravam a entrada de judeus no Brasil.
Em carta enviada em 1938 ao então interventor federal em São Paulo, Adhemar de Barros, Aranha alertava sobre os riscos da imigração de judeus para o Estado.
“O israelita, por tendência milenar, é radicalmente avesso à agricultura e não se identifica com outras raças e outros credos. Isolado, há ainda a possibilidade de vir a ser assimilado pelo meio que o recebe (…). Em massa, constituiria, porém, iniludível perigo para a homogeneidade futura do Brasil”, escreveu o chanceler.
Aranha disse que poucos dias antes havia sido procurado por um judeu austríaco radicado no Brasil, Frederico Zausmer, que pedia a regularização migratória de outros 300 judeus residentes em São Paulo – fato que, para o chanceler, despertava “justas suspeitas da existência de um ‘Getto’ já em formação nessa capital”.
Naquele anos, guetos eram os bairros nos países sob jugo nazista onde judeus eram obrigados a morar, e de onde foram recolhidos e enviados aos campos de extermínio.
Velhos e crianças órfãs
Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), muitos dos formuladores das restrições à migração de judeus permaneciam no governo brasileiro. Em 1948, o Conselho Nacional de Imigração e Colonização instruiu o Ministério das Relações Exteriores a reforçar as barreiras contra o grupo.
Uma circular orientava os consulados brasileiros a “não visar passaportes de judeus” – o que, segundo Tucci, fechou as portas para muitos velhos e crianças órfãs que haviam sobrevivido ao Holocausto e buscavam uma nova pátria.
Apesar das restrições, milhares de judeus conseguiram se mudar no Brasil antes e depois do Holocausto, dando origem a uma comunidade que conta hoje com 120 mil membros, segundo a Confederação Israelita do Brasil (Conib). Tucci diz que boa parte do grupo entrou no país com documentos falsos, com vistos de turistas ou passando-se por cristãos.
Foi o caso da família formada por Avraham, Frymet, Markus, Salomea, Josef e Sara Gottlieb, judeus poloneses que conseguiram vistos na embaixada brasileira em Roma com certidões falsas de batismo.
Outros contaram com a ajuda de judeus brasileiros proeminentes, como o advogado José Mindlin (1914-2010), que negociou pessoalmente a concessão de vistos com autoridades. Mindlin teve papel central na reunificação de várias famílias, como os Adler, judeus alemães.
Tucci conta que, em 1938, o comerciante Moritz Adler foi preso pelos nazistas e levado a um campo de concentração perto de Frankfurt. Mindlin foi acionado por parentes do alemão que já estavam no Brasil e conseguiu um visto para que ele deixasse o país rumo ao Brasil com a esposa, Frieda. O consulado do Brasil em Frankfurt, porém, negou os vistos para as duas filhas do casal, Tilly e Elsberg.
A mãe resolveu ficar com as crianças, e Moritz viajou sozinho. A família só voltou a ficar completa no fim de 1941, quando Mindlin obteve os vistos para as meninas. No Brasil, os Adler criaram a Estrela, até hoje uma das principais marcas nacionais de brinquedos.
Houve ainda judeus que chegaram ao país graças a diplomatas que se recusaram a cumprir as ordens restritivas. Um deles foi Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador do Brasil na França entre 1922 e 1943, que concedeu centenas de vistos a judeus sem informar ao governo a origem étnica dos requerentes.
Uma das famílias salvas por Dantas foi a da pintora tcheca Lise Forell, que em 1940 embarcou no navio Alsina rumo ao Brasil com os pais, avós maternos e um tio. Forell teve uma carreira de sucesso no Brasil, expondo obras no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e em várias galerias.
Por causa da insubordinação de Dantas, Vargas instaurou um processo administrativo contra o embaixador, que passou 14 meses detido na Alemanha após tropas nazistas invadirem a embaixada brasileira, em 1942. Em 2003, ele foi reconhecido como um Justo entre as Nações pelo Yad Vashem (Museu do Holocausto), em Jerusalém.
Questionado pela BBC, o Itamaraty afirmou por meio de sua assessoria de imprensa que as políticas migratórias da época eram elaboradas pelo Ministério da Justiça e que os diplomatas apenas as executavam.
Neto e autor de uma biografia sobre Oswaldo Aranha, Pedro Corrêa do Lago foi procurado por intermédio de sua editora, mas não respondeu.
Ressurgimento do antissemitismo
Tucci diz que conhecer a postura do Brasil em relação a judeus que fugiam do nazismo tem grande valia num momento em que o mundo volta a debater formas de lidar com grandes levas de migrantes e refugiados.
“Temos aqui um espelho muito interessante para repensar uma série de políticas e ações restritivas que estão sendo adotadas por vários países”, afirma a professora.
Tucci afirma ainda que a discriminação dos judeus nos tempos de Vargas e Dutra serve de alerta para o “revigoramento do antissemitismo” no Brasil e no mundo. “O antissemitismo sempre reaparece nos momentos de crise, nas erosões do pensamento democrático, quando os mitos sobre a existência de uma grande conspiração judaica para dominar o mundo ressurgem com outras roupagens”, diz a historiadora.