Saldanha era gerente de uma empresa de porte médio, mas esse é apenas um detalhe da sua biografia linear. Na vida profissional, tudo corria dentro de uma normalidade prevista e previsível. Um dia após o outro era apenas um dia depois do outro, e somente nisso eles se distinguiam.
Mas numa terça-feira de verão, por volta das 19 horas, essa rotina foi bruscamente alterada. Ele estava num pequeno mercado de bairro, onde fazia compras, dividindo o espaço com outros clientes. Lá fora, o barulho dos carros foi quebrado por uma sirene apressada e com destino certo.
Do lado de dentro, um homem trabalhava sem pretensões. De cócoras junto a uma gôndola, Elias, um sócio, recolocava e abastecia o cenário para agradar os olhos dos consumidores e curar a depressão da caixa registradora, máquina que experimentava uma estranha sensação de vazio. Ele sempre se empenhava em aproveitar melhor cada pequeno espaço para garantir algum efeito, às vezes pirotécnico, em tempos de crise. Com naturalidade, decidiu que apanharia uma pequena caixa provisoriamente encostada a alguns metros do seu braço habituado àqueles movimentos.
Foi malsucedido. Não por causa da caixa, que era inocente. Mas devido a uma dorzinha, uma dorzinha crescente no peito e uma falta de ar suficiente para provocar incômodo. O formigamento no braço veio fazer companhia, nesse cenário imprevisto. Elias ficou imóvel no chão, como era imóvel a vida de Saldanha até aquele momento.
Os sintomas o impediram de fazer até mesmo os movimentos mais simples. Por exemplo, ficar em pé. Por exemplo, distanciar-se até a longa distância de alguns metros dali. Por exemplo, pedir socorro a quem não estivesse bem próximo dele. A voz forte se transformou em sussurro.
Envolvido pela cena, Saldanha pensou no indispensável que aprendeu sobre cuidados em situação de risco. Ele precisava agir. Ele precisava acelerar o corpo e a mente.
Mas uma questão entrava em cena, incomodando pela falta de clareza que provocava: ser muito rápido, em favor da vida, poderia significar uma decisão fatal por negligenciar detalhes fundamentais; deixar o tempo à vontade apontaria para omissão imperdoável.
Saldanha nunca havia lidado com alguém que experimentava os primeiros sintomas de infarto. Apenas sabia que, de maneira geral, um procedimento inadequado poderia causar um mal maior à vítima. Por isso, ele deveria conciliar calma e urgência, o cuidado permeando cada pequeno gesto, cada palavra, cujo sentido poderia ser levado para muito longe da disciplina do dicionário.
Isso não o deteve. Comprometido com a ideia de se envolver com o próximo, tomando a iniciativa de agir antes de ser convidado a fazer isso, ele seguiu em frente. Decidiu que prestaria auxílio ao empresário. Tudo, no entanto, deveria acontecer de tal forma que Elias recebesse o devido socorro, não o de Saldanha, mas aquele prestado por profissionais treinados.
Além de Saldanha, outro cliente, Marcos, interrompeu a compra de alguns ingredientes para uma pequena festa de aniversário e ofereceu apoio. O auxílio era bem-vindo. A parceria tinha resultado garantido porque, afinal, o foco estava no essencial, a vida.
Um novo desafio atravessou essa cena indesejada: Marcos tentou, insistiu, mas o telefone do resgate não atendia. Soube-se depois que há dias estava com dificuldades no sistema, razão porque tudo se tornou muito demorado.
Marcos se juntou a Saldanha na incerteza quanto ao que realmente significava prestar socorro de maneira prática e eficaz. Também ele estava receoso sobre a validade da sua ação. Também ele sabia que, malsucedida, ela poderia gerar mais problemas à saúde de Elias do que se tivesse sido deixado em seu lugar, apenas esperando pelo socorro vindo do resgate. O coração afetado da vítima poderia andar meio sem tempo para esperar pela solução de uma crise envolvendo a ética vivida por dois desconhecidos, íntimos apenas pelo fato de pertencerem à raça humana.
Com a impaciência que caracteriza os perfeccionistas, Saldanha ligou novamente para o resgate. Ligou. Ligou. Ligou e esperou até que o socorro cuidasse da remoção de Elias para o hospital mais próximo. Finalmente ele foi resgatado.
Enquanto isso, Saldanha entrou em contato com familiares de Elias. Lentidão. Alguém apareceu, claro, mas tudo aconteceu num período de tempo suficiente para preparar e servir um banquete com duzentos talheres. Quanto aos médicos que cuidaram do caso, eles tinham um pouco mais de pressa. A vida é frágil.
Dias depois, Saldanha e Marcos prosseguiram a conversa, olhando para todos os ângulos daquela experiência. E emendaram com outros temas, passando pelo futebol, pescaria, trabalho, política, mas, principalmente, sobre voluntariado. E emendaram com a promessa de uma conversa pessoal, entre um chopinho e outro.
Por conta do sentido de comprometimento, eles acabaram amadurecendo alguma ideia nessa direção, percorrendo um caminho ainda indefinido. O coração haveria de ditar os parâmetros dessa nova empreitada. Quantos Elias existem que dependem do comprometimento para não sentir que a vida está de malas prontas e atrasada para a viagem definitiva?
Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao