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A construção da verdade – Lançamento

Vem a lume o livro A construção da verdade, de Diana Pessoa de Barros, Paolo Demuru, Regina Souza Gomes e Renata Mancini, que discute questões importantes da atualidade: a verdade, a verossimilhança, a veridicção. No capítulo VIII de Dom Quixote, de Cervantes, há a seguinte passagem:

A construção da verdade - Lançamento

Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele campo. Assim que D. Quixote os viu, disse para o escudeiro:
– A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.
– Quais gigantes? – disse Sancho Pança.
– Aqueles que ali vês – respondeu o amo – de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.
– Olhe bem Vossa Mercê – disse o escudeiro – que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.

Como sabemos que a afirmação do Quixote é falsa e a de Sancho Pança é verdadeira? Nesse texto, temos um narrador em terceira pessoa e o que ele diz é o que se considera verdade ou não.

Durante muito tempo, a verdade foi conceituada como a adequação entre o discurso e a realidade. Tomás de Aquino dizia, na Suma Teológica, que “veritas est adaequatio intellectus et rei” (I, q. 16, a. 1). Se o que se dizia estava de acordo com a realidade, então o que se expunha era verdade; se não estava, era mentira ou falsidade. Isso significava que a questão da verdade não era um problema linguístico, porque dizia respeito à relação entre a linguagem e o referente, tema que não faz parte dos estudos da linguagem.

No entanto, depois do surgimento da internet, com a proliferação das redes sociais, ganhou amplitude, devido a sua universalidade e rapidez, a questão das notícias falsas: fake news, deep fake, pós-verdade, fatos alternativos, teorias conspiratórias e assim por diante. Diante desse fenômeno, começa-se a perceber que a realidade é uma construção discursiva regida por relações de força e jogos de poder; é um processo de elaboração de crenças; resulta da interpretação do destinatário com base em seus valores, em suas crenças, em suas emoções, etc. A verdade é menos um problema da ordem do saber e mais do âmbito do crer. Isso quer dizer que ela se diz de muitos modos. Ora, com base nisso, a linguística tem o que dizer sobre a verdade, a falsidade, a mentira. A semiótica discursiva e narrativa debruçou-se sobre o tema e estabeleceu, para estudar a problemática da verdade, a categoria da veridicção, ou seja, o dizer verdadeiro. Assim, o que se analisam são os mecanismos linguísticos com que se constrói um parecer verdadeiro, ou seja, o efeito de sentido de verdade, de realidade, decorrente de um contrato enunciativo estabelecido entre o enunciador e o enunciatário, indicando que um texto deve ser lido como verdade, falsidade, mentira ou segredo, como ficção ou representação da realidade. Há, por conseguinte, um fazer persuasivo do destinador e um fazer interpretativo do destinatário que levam, no interior das bolhas dos que partilham os mesmos valores, a ler mentiras como verdades e assim sucessivamente. A verdade decorre, então, de uma crença no dito e de uma confiança no sujeito que diz.

A construção da verdade - Lançamento

Essa ideologia da mentira enfraquece a democracia, que tem necessidade da verdade. Por isso, é imperativo ensinar às pessoas como reconhecer a mentira sob a aparência de verdade, os mecanismos linguísticos com que se produz o parecer verdadeiro; é necessário iluminar os modos de dizer verdadeiros e perceber as astúcias do fazer crer.

Esta obra divide-se em quatro capítulos. O primeiro aborda a arquitetura do discurso veridictório, mostrando que a verdade não deriva, nos assuntos humanos mais importantes, da adequação do discurso a um referente externo, mas da capacidade de fazer crer do discurso, ou seja, de ele criar ou consolidar convicções individuais ou coletivas, evidenciando que a verdade não é uma questão de fidedignidade, mas de fidúcia. Estuda então dois procedimentos básicos de engendramento desse parecer verdadeiro: a camuflagem objetivante e a camuflagem subjetivante, ou seja, textos em terceira ou primeira pessoa, que criam efeitos de objetividade e de subjetividade. Analisa quais são mais eficazes, conforme os gêneros do discurso, e quais os mecanismos linguísticos com que se produzem esses procedimentos.

No segundo capítulo, discutem-se os graus de veridicção, de crença. A verdade e a mentira não são vistas como categorias polares, mas numa gradualidade, em que se encontram “parecer muito, parecer pouco, quase ser, não ser de forma alguma, ser exatamente, até ser, quase parecer, não parecer nada”. A verdade e a falsidade constroem-se com uma relação implicativa, enquanto o segredo e a mentira, com uma relação concessiva. A estratégia de banalização, de trivialização dos discursos de impacto, que são concessivos, faz que eles vão atenuando-se numa naturalização implicativa. O grande volume de informações na internet contribui para a formação de “bolhas” de informação que enfraquecem as balizas coletivas de referencialização discursiva dos julgamentos veridictórios. Assim, a internet produz a crise veridictória que estamos vivendo. Inúmeros exemplos são apresentados para comprovar essas teses.

O terceiro capítulo começa por constatar que as fake news podem ser desmascaradas a partir do exame dos próprios textos e das relações do texto com outros textos. Buscam-se, para isso, contradições, incoerências, rupturas, estranhamentos, anomalias na organização dos textos e nos diálogos entre textos. Desse modo, devem ser notados defeitos de argumentação, rupturas e mudanças semânticas, contradições entre o verbal e o visual, incoerências isotópicas e assim sucessivamente. Examinam-se diferentes tipos de discursos mentirosos: fake news e falsas revisões da História e da ciência.
Apontam-se as diferenças entre os textos mentirosos e os textos poéticos e humorísticos. O capítulo termina expressando que a escola tem o papel de ensinar os procedimentos de construção da veridicção com vistas a que os estudantes façam uma leitura menos ingênua dos textos que recebem pelas redes sociais.

O quarto capítulo versa sobre a hibridização dos regimes de crença e a veridicção. Os textos trazem instruções de leitura. Assim, cada gênero tem um regime de crença e de veridicção próprios. As estruturas composicionais contêm pistas para reconhecer o regime de crença e de verdade proposto.
Ora, a hibridização dos gêneros desestabiliza a percepção e a seleção do regime apropriado. A instabilidade dos gêneros (por exemplo, ficção na forma de documentário ou ensaio) produz interpretações enganosas. Quando se precarizam os gêneros, cria-se uma crise de credibilidade (por exemplo, na imprensa), dada a dificuldade de escolher o regime de crença e fazer julgamentos de veridicção. Esse conteúdo é fartamente ilustrado com exemplos das mídias.

Como se vê, este livro, dada a polarização e a crise de credibilidade que assolam nosso tempo, é uma das obras mais úteis publicadas por linguistas no Brasil. Ele ensina a não aceitar piamente as mensagens que se recebem nas redes sociais; a ler, de maneira crítica, as informações que nos chegam aos borbotões. É um livro proveitoso não só para os estudiosos da linguagem, mas para todos os que se preocupam em combater o que Umberto Eco chamava o “fascismo eterno”, fundado na mentira, que não só falseia os fatos do mundo, mas pretende criar uma nova realidade. É um livro para todos os que lutam pela democracia. Nada poderia ser mais nobre neste momento.

São Paulo, num dia primaveril de 2024.
José Luiz Fiorin (USP)

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