Em 24 de fevereiro de 1932 foi publicada a primeira legislação eleitoral brasileira que reconhecia o voto feminino e incluía o voto secreto (Decreto n. 21.076). A redação do decreto considerou eleitor “o cidadão maior de 21 anos sem distinção de sexo”. O uso de sobrecartas oficiais uniformes e opacas, o isolamento do eleitor em cabine indevassável para a colocação das cédulas nas sobrecartas, a estandardização das cédulas e da urna deram ênfase ao segredo do voto.
A partir de então, as mulheres brasileiras foram integradas na categoria de indivíduo capaz de expressar opiniões políticas próprias por meio do ato do voto, a ser praticado secretamente em local e urna outorgados comuns aos dois sexos.
Entretanto, o indivíduo abstrato e a ênfase no segredo escondiam o fato de que o voto, obrigatório para o sexo masculino, não o era para o sexo feminino, o que nos incita a considerar as maneiras de pensar o cidadão, de perceber e praticar o ato do voto.
Na primeira constituição brasileira e nas esparsas leis eleitorais produzidas no período do Império, o sexo não era mencionado. O direito de voto era indicado para “os cidadãos brasileiros que estão no gozo de seus direitos políticos”. Essa abstração do sexo subentendia as mulheres na categoria de esposas, filhas ou mães, agregadas em torno do votante, marido ou pai, portador do censo eleitoral. Esse censo era de cem mil réis de renda líquida anual “por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego”. Isto é, a unidade política do Império era o patrimônio familiar, e não o cidadão.
Por essa razão, a diluição das mulheres dentro da família no espaço político não foi motivo de reação. Até os anos de 1880, nas páginas dos jornais femininos defendia-se somente a instrução das mulheres, considerada necessária para que elas pudessem dirigir a educação dos filhos, acompanhar os maridos e dignificar a família. Esses escritos permitem compreender a situação política das mulheres, mantidas numa espécie de exterioridade eleitoral, não em razão de seu sexo, e sim devido ao seu estatuto socionatural de esposas e mães de cidadãos, ou seja, de membros da família. O trabalho de abstração que implica o desligamento das mulheres de seus encraves sociais exigiu uma difícil aprendizagem, que acompanhou a individualização da prática do voto.
Votar era um ato coletivo. Tratava-se inicialmente de uma assembleia de votantes, de deliberação coletiva. A transformação para um local neutro de intimidade democrática, onde o eleitor realiza só e secretamente a operação do voto sem tumulto e violência (física ou verbal), tem uma história longa, feita de muitas tentativas, de intensos debates no Parlamento e numerosos conflitos.
Antes de 1880, a eleição era realizada dentro de igrejas após uma comissão local identificar e alistar o cidadão em meio a contendas e turbulências. A organização material do local de votação se reduzia a uma mesa e uma urna improvisada, sem separação evidente da assembleia. Os votantes depositavam na urna um pedaço de papel trazido de casa com os nomes e as profissões dos candidatos e assinavam esse papel diante dos mesários, o que impedia o sigilo do voto. Em 1881, a Lei Saraiva aboliu as comissões paroquiais e encarregou uma magistratura de alistar o eleitor, visando formar listas padronizadas permanentes em formulários idênticos, base para a contabilidade do Estado e a criação de um corpo eleitoral neutro. O local onde
funcionava a mesa eleitoral foi separado, por uma divisória, do lugar onde ficavam os eleitores, que só podiam entrar à medida que fossem chamados, um a um, para “votar na presença de todo mundo”.
A ausência feminina na chamada para votar não era notada. Passou a constituir problema, exigir explicação, tornar-se assunto parlamentar e questão intelectual quando, com a República, o voto censitário foi abolido e a unidade política deixou de ser a fortuna familiar. As mulheres, antes niveladas pelo fato de que somente o detentor do patrimônio familiar exercia o direito do voto, emergiram como “nulidade política” em relação aos outros membros da casa: os filhos e os empregados domésticos. Os domésticos, em especial, aos quais as patroas davam ordens, foram, politicamente, colocados acima delas, tratados como homens que podiam votar. Bruscamente, a mulher foi retirada de uma unidade eleitoral, que era a família, e colocada diante de uma nova unidade política que era o homem adulto do sexo masculino. A visibilidade política dada ao sexo perturbou os contemporâneos e exigiu o estabelecimento de uma distinção entre mulher e esposa, entre o ser capaz de exercer funções políticas e o ser determinado por seu sexo.
Nos debates da Constituinte de 1890, a confusão dos termos mulher, esposa e contribuinte levou um deputado a discursar que a mulher “é senhora. Representa a senhora do marido na sociedade e domina o lar”. Um outro argumentou que se a mulher pagava imposto, como “não pode ter o exercício do mesquinho direito de voto dado ao homem da enxada que apenas saiba ler e escrever?”. Obrigada, pela primeira vez, a explicar a privação do sexo feminino da função eleitoral, a maioria dos deputados pensou com os antigos instrumentais oriundos da ordem política anterior e seguiu a opinião do deputado Moniz Freire:
[…] querer desviar o espírito feminil dessa função que é a base de toda a organização social, cujo primeiro grau é a família, para levá-la ao atrito das emulações práticas, no exercício de funções públicas, é decretar a concorrência dos sexos nas relações da vida ativa, nulificar esses laços sagrados da família, que se formam em torno da vida puramente doméstica da mulher.
A particularidade sexual, ao emergir no Parlamento, deu início às discussões na imprensa feminina cujas redatoras sentiram essas declarações como uma exclusão política, uma rejeição à capacidade eleitoral do seu sexo, e passaram a se manifestar contra isso.
A relação dos homens e das mulheres com a família dentro do espaço político era uma discussão difícil porque, nas normas das Ordenações Filipinas que ainda regiam o direito civil, a família era a unidade básica da sociedade, reconhecendo ao homem a superioridade jurídica. O Código Civil de 1917 pouco inovou a esse respeito.
Para integrar as mulheres no corpo eleitoral, as várias entidades, congregando militantes feministas, que ganharam impulso nos anos 1920, tiveram que se defrontar, ao mesmo tempo, com essa questão legal do Código Civil e com os dispositivos materiais que pudessem garantir a individualização do exercício do sufrágio por meio do voto secreto. Sem o voto secreto não haveria a garantia de que a mulher pudesse votar desvinculada do pai ou do marido.
Para o eleitor masculino votar sem constrangimento, a legislação de 1904 havia obrigado a separação da mesa eleitoral do resto da sala de votação por meio de uma grade. E para garantir o segredo do voto, essa lei introduziu o envelope em que o indivíduo colocaria a cédula para depois depositá-lo na urna, eliminando o gesto de entrega da cédula aos mesários. Entretanto, a mesma legislação permitiu também o voto descoberto, o que eliminava o sigilo.
Diante dessa situação, o movimento feminista pregou a total garantia do voto secreto e a igualdade homem–mulher em nome da valorização do indivíduo abstrato. Com a ênfase na competência universal, pregada como ideal de igualdade republicana, o movimento procurava eliminar as representações sociais da cidadania que sublinhavam a tradicional dependência da mulher como empecilho ao voto feminino.
O resultado da rendição do corpo eleitoral feminino às normas de igualdade republicana foi a extensão do sufrágio ocorrer somente na ordem do discurso: aos olhos da sociedade, cidadão e cidadã continuaram a ser pensados em níveis diferentes de competência. Assim, no anteprojeto do Código Eleitoral de 1932, o redator preferiu não conceder:
[…] a perfeita igualdade política dos sexos, pelo menos quanto à forma de obrigatoriedade do alistamento. Seria isso destroçar num momento, sem uma preparação prévia, uma tradição secular e um sistema de direito privado, em que a mulher casada ainda está colocada em situação desigual à dos homens no que diz respeito à chefia do casal, administração dos bens, escolha do domicílio e da profissão daquela fora do lar.
Por Letícia Bicalho Canêdo – historiadora e coordenadora do grupo de pesquisa Instituição Escolar e Organizações Familiares (focus) na Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (Unicamp), onde é professora – no livro Dicionário de Datas da História do Brasil, publicado pela Editora Contexto.