Em 30 de abril de 1948, em Bogotá, Colômbia, era fundada a Organização dos Estados Americanos (OEA) da qual faziam parte 21 países que adotaram então a sua Carta. Os ministros das Relações Exteriores, representando seus países, assinaram-na e proclamaram sua intenção de promover a paz no continente.
No dia 9 de maio de 1948, o mais popular candidato às eleições colombianas, Jorge Eliecer Gaitan, foi assassinado por opositores políticos e, logo depois, Bogotá explodiu em violência. Bondes foram queimados, lojas saqueadas, uma central de polícia foi invadida e as armas distribuídas entre a multidão enfurecida. Iniciavam-se dez anos de convulsões que matariam mais de 200 mil colombianos.
As chamas em Bogotá como que simbolizavam as estruturas profundas da violência nas sociedades desta parte do mundo, evidenciando a distância entre a diplomacia interestatal, lapidada nas capitais europeias, e a realidade social e política marcada pela exclusão, por instituições frágeis e pela prática corriqueira da força bruta.
A Segunda Grande Guerra terminara há apenas três anos, organizava-se a primeira operação de paz no Oriente Médio, o Plano Marshall garantia a reconstrução da Europa, a Guerra Fria adquiria os contornos que marcariam as relações internacionais até o final da década de 1980. Era necessário adaptar o sistema interamericano à nova realidade internacional e, em particular, à estrutura institucional e jurídica criada pela constituição da ONU. A produção da Carta da OEA deve ser compreendida nesse contexto. O documento constitui parte importante da base normativa para as relações entre os Estados do continente americano, juntamente com um conjunto de tratados e resoluções da assembleia Geral da OEA. Além disso, a compreensão da história e do papel da OEA é fundamental para entendermos a inserção do Brasil e das Américas no sistema internacional.
Dentre todas as organizações regionais de caráter multidimensional que hoje compõem o quadro de instituições multilaterais, a OEA é a mais antiga.
Ao longo da segunda metade do século XX, as organizações e as cooperações regionais foram se tornando parte importante da arquitetura do sistema internacional. Após o final da Guerra Fria, o debate sobre o regionalismo e as organizações regionais adquiriu nova relevância no contexto de discussões amplas sobre as transformações do sistema internacional. Crescentemente, organizações regionais assumiram um papel relevante na administração da segurança internacional, ou seja, na negociação de disputas territoriais, na resolução de conflitos intraestatais, na produção de operações de paz, na criação de normas, regras e procedimentos regionais em cooperação com a ONU.
ORIGENS POLÍTICAS E INTELECTUAIS
A Carta da OEA é resultado do encontro de processos de caráter mais universal, como o desenvolvimento do moderno sistema de Estados, e de trajetórias mais específicas, ligadas à história das Américas.
As relações entre Estados, desde os primórdios da modernidade, que viria consolidar um sistema de Estados soberanos, são caracterizadas por situações de conflito e de cooperação. Essas relações foram sendo conformadas por um conjunto de normas, regras e procedimentos relativos a questões diplomáticas gerais até questões bastante específicas sobre esferas funcionais, como as que envolvem, por exemplo, a aviação civil ou o controle de doenças contagiosas.
Podemos dizer que a OEA é resultado deste longo processo histórico de interação entre Estados. Ela é, também, resultado de um caminho complexo de construção de vínculos entre os países do Ocidente que passaram lentamente, ao longo dos séculos XIX e XX, a pautar-se por normas de não intervenção, manutenção da integridade territorial e busca de resoluções pacíficas para disputas internacionais.
Desde os anos 1820, o movimento hispano-americano, liderado então por Simón Bolívar, buscou criar uma confederação para proteger os países recém-independentes de intervenções europeias. Já nessa época, o problema da fragilidade da soberania de países claramente periféricos do ponto de vista da distribuição de poder no sistema internacional se colocava. Em 1826, Simón Bolívar convocou a primeira das três conferências pan-americanas. Seu objetivo era estabelecer uma União dos Países da América Espanhola para promover a prosperidade e a defesa comum dos Estados da região. México, Grã-Colômbia (Colômbia, Venezuela e Equador), Peru e a Federação Centro-Americana (federação republicana que, entre 1823 e 1840, incluía El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Guatemala) estiveram presentes nessa primeira conferência, conhecida como Congresso do Panamá. Os Estados Unidos e o Brasil não participaram do evento circunscrito às nações hispano-americanas.
Durante esse encontro, foram assinados tratados relativos à disposição para a cooperação em questões econômicas e no campo da segurança. Os delegados concordaram em defender a independência e a soberania dos países membros contra toda dominação estrangeira, iniciando o processo de construção de normas compartilhadas pelos países americanos. Durante as décadas seguintes, outras reuniões ocorreram, diversos tratados foram negociados e as ideias de solidariedade continental, resolução pacífica de conflitos e políticas de não intervenção adquiriram raízes na cultura internacional da região.
O envolvimento dos Estados Unidos, a partir do final do século XIX, mudaria o escopo e a natureza do sistema interamericano. Depois da Guerra Civil Americana (1861-65), os Estados Unidos, na medida em que se tornavam uma potência mundial, alimentaram um interesse maior nas relações econômicas com os países latino-americanos. Nesse momento observa-se uma mudança de foco: da cooperação e integração hispano-americana para um movimento pan-americano de aproximação.
O jogo entre as potências imperialistas modificava-se com a transição da hegemonia mundial britânica para a hegemonia mundial norte-americana, que se consolidaria justamente no período de formação da OEA. A disputa entre Grã-Bretanha e Estados Unidos por influência na América Latina expressou-se em diversos episódios marcantes, entre eles o conflito fronteiriço entre Venezuela e Guiana Britânica (1895-1896).
Além disso, os Estados Unidos iniciaram uma série de intervenções armadas na América Latina. A América Central e o Caribe sofreriam, entre o final do século XIX e a década de 1930, mais de 30 intervenções norte-americanas.
Em 1889, foi convocada em Washington a primeira Conferência Interamericana. Participaram desse evento 19 países latino-americanos, incluindo Argentina, Brasil e México. Os delegados criaram a União Internacional das Repúblicas Americanas com o propósito de coletar e divulgar informações comerciais entre os Estados-membros. Fundaram também o Bureau Comercial das Repúblicas Americanas. Durante a quarta Conferência Interamericana, realizada em 1910 em Buenos Aires, o Bureau Comercial passou a ser designado União Pan-Americana.
Durante a década de 1930, sob a liderança do presidente Franklin D. Roosevelt, os Estados Unidos optaram por mudar significativamente sua política para a América Latina. A “Política da Boa Vizinhança”, que passou a ser adotada, pregava a não intervenção militar e a cooperação entre os países.
Durante a VII Conferência Interamericana, reunida em Montevidéu em 1933, foi assinado o Pacto de Não Intervenção e Inviolabilidade de Territórios (Convenção dos Direitos e Deveres dos Estados), traduzindo a mudança em curso. Somente, então, o governo norte-americano concordou em ampliar a agenda das Conferências Interamericanas para incluir assuntos políticos e de segurança, permitindo que disputas entre Estados fossem tratadas como problema coletivo. A partir disso incorporou-se às instituições das Américas a ideia de resolução pacífica de disputas e mecanismos de consulta passaram a ser implementados.
A Segunda Guerra Mundial foi um importante marco na afirmação da hegemonia dos Estados Unidos no continente americano. A disputa entre países europeus e os Estados Unidos estaria, a partir de então, definitivamente resolvida. A tentativa alemã de articular esferas de influência na região havia sido a última expressão dessa disputa. A nova configuração internacional negociada nas conferências das potências vencedoras não deixava dúvidas sobre o peso da influência norte-americana na região.
Os Estados Unidos haviam conseguido unificar a maior parte dos países do continente em torno de sua posição diante do conflito. Na nova realidade da Guerra Fria, era possível, então, remodelar as instituições interamericanas.
Em 1945, durante a Conferência Interamericana sobre Guerra e Paz, realizada na Cidade do México, foi assinado o Tratado de Chapultepec, que estabelece um mecanismo de resposta coletiva às agressões contra os países americanos. Dois anos depois, um arranjo permanente nesse sentido foi produzido – o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca ou Tratado do Rio de Janeiro (Tiar). O Tiar prevê a mútua defesa e define um ataque contra um Estado como um ataque contra todos. Assim, o conceito de segurança coletiva é introduzido na região. O artigo 6 do tratado estabelece que um órgão de consulta deverá se reunir em caso de agressão contra um Estado soberano e procurar uma resolução pacífica para a disputa. Ele tem autoridade para exigir que os Estados em contencioso suspendam as hostilidades e restaurem o status quo ante bellum (realidade anterior ao conflito armado). As decisões são aprovadas por maioria de dois terços, não há sistema de veto e todos os Estados devem respeitar as resoluções relativas a sanções.
Finalmente, durante a nona Conferência Interamericana, realizada entre março e maio de 1948, a OEA tornou-se a primeira dentre uma série de organizações regionais que ao longo das décadas seguintes permitiriam a realização dos princípios presentes no capítulo VIII da Carta da ONU: a complementaridade entre as organizações regionais e a ONU e a subordinação destas, em última instância, às decisões do Conselho de Segurança da ONU. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e o Pacto de Bogotá foram assinados na mesma ocasião. Em dezembro do mesmo ano, um conflito entre Costa Rica e Nicarágua fez com que pela primeira vez a OEA e o TIAR fossem chamados a lidar com ameaças à segurança na região.
Mônica Herz é professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e diretora do seu Instituto de Relações Internacionais. Doutora em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science, é presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais desde 2007.
Fonte: HERZ, Mônica. “A carta da OEA (1948)”. In: MAGNOLI, Demétrio. História da Paz. Editora Contexto.