A memória das datas de 29 de setembro de 1848 e 2 de fevereiro de 1849 – relacionadas, respectivamente, à posse do ministério presidido pelo ex-regente e líder conservador Pedro de Araújo Lima, visconde de Olinda, e à derrota do Exército Liberal no Recife (o mais importante episódio da Revolução Praieira) – perdeu-se no conjunto dos eventos da história do Segundo Reinado. Entretanto, esses acontecimentos tiveram um significado especial na trajetória da monarquia brasileira, pois marcaram o início de um período de hegemonia conservadora que perduraria por 15 anos e praticamente finalizaria a destacada atuação que os “liberais históricos” – políticos de variada origem engajados num projeto nacional preocupado em ampliar a representação dos cidadãos no Parlamento – vinham desenvolvendo na política imperial desde o Primeiro Reinado.
A Revolução Praieira (1848-1850) assinalou o clímax de um confronto entre grupos liberais (praieiros) e conservadores (guabirus) pelo domínio político da província de Pernambuco, disputa que se desdobrou em três momentos. No primeiro deles (1842-1844), o Partido Nacional de Pernambuco, alcunhado “Partido da Praia” (pelo fato de seu jornal, o Diário Novo, ser impresso na rua de mesmo nome, um local tradicionalmente ligado ao comércio a retalho), conquistou, com significativo apoio dos eleitores primários do Recife, apelidados “os cinco mil”, os principais cargos eletivos provinciais. No segundo (1844-1848), os praieiros reformaram a administração de Pernambuco e tentaram, sem sucesso, eleger representantes para o Senado. No terceiro (1848-1850), diante da contingência de perder o poder, o partido recorreu às armas. O impacto da guerra sustentada por senhores de engenho da ala “praieira” da Guarda Nacional, seus dependentes e alguns grupos de combatentes recrutados na capital e vilas vizinhas – que o governo imperial debelou com dificuldade – tornou o movimento um símbolo da resistência liberal contra a ascensão conservadora e um marco na vida política do Império. Retomemos seu percurso.
A ascensão do gabinete Olinda em setembro de 1848, a suspensão dos trabalhos da Câmara dos Deputados, encerrando suas atividades e prenunciando uma dissolução, e a designação do conservador Herculano Pena para presidir Pernambuco assinalaram uma inversão política no Império e na província e a eclosão da guerra civil pernambucana. Organizados pela “Sociedade Imperial”, os praieiros haviam se preparado militarmente para enfrentar os conservadores, mobilizando forças policiais e da Guarda Nacional e estocando armas e munições. O objetivo imediato era preservar o comando militar nas vilas e cidades do interior e vencer as eleições de vereadores e juízes de paz e, posteriormente, a de deputados gerais e de senadores. As motivações para o recurso às armas eram prementes: “salvar vidas e propriedades e a honra pernambucana […] ensinar a um governo traidor que os povos são a única entidade que existe no estado social”.
O desafio “praieiro” fez o presidente cancelar o pleito e acionar um plano para dominar rapidamente as oposições com forças da Tropa de Linha, da Guarda Nacional e particulares fiéis ao governo. Acuados, os rebeldes ampliaram seus objetivos. Em novembro de 1848, os deputados do partido hipotecaram seu apoio aos correligionários, os grupos combatentes se reuniram, e o “movimento” divulgou um programa de reformas políticas reivindicando uma Assembleia Constituinte e um alargamento da representação parlamentar, em especial no Senado.
O adiamento sine die das eleições, o crescimento das forças oficiais com a chegada de tropas da Bahia e de Alagoas, a vitória dos resistentes no Combate de Cruangi (20/12/1848) e a queda do presidente Pena cobraram a organização das tropas praieiras num exército. Exigiu, também, a participação direta dos deputados na guerra, para conferir “uma direção conveniente a ela”, evitando radicalizações dos republicanos liderados pelo jornalista Borges da Fonseca, líder dos “cinco mil”. Divergências internas aos rebeldes afloraram. Enquanto o Diário Novo propunha como “Bandeira do Movimento Liberal” reformas para a “regeneração da Província e do Império”, privilegiando a descentralização administrativa e a ampliação da representação política, um “Manifesto” de outro grupo reivindicava intervenções mais contundentes no regime monárquico, “a expulsão dos portugueses, o comércio a retalho para os brasileiros, o voto universal, a extinção do Poder Moderador”.
Em janeiro de 1849, as tropas praieiras aglutinaram-se no sul da província e escolheram um Diretório Liberal com chefes moderados, os deputados Peixoto de Brito e Afonso Ferreira, e republicanos, Manuel Pereira de Moraes e Borges da Fonseca, levando o governo a também deslocar suas forças, na esperança de vencer definitivamente o inimigo. Na capital, a Chefia de Polícia, sob comando do conservador Figueira de Melo, desenvolvia acurado controle evitando que simpatizantes enviassem munições e suprimentos aos revoltosos.
Informado, o comando “praieiro” decidiu por uma marcha rápida para ocupar Recife, buscando fugir ao cerco e marcar uma vitória política obrigando o governo da província e o gabinete Olinda a negociar. Mil e duzentos homens atacaram a cidade a 2 de fevereiro de 1849, divididos em duas colunas. Uma entrou pelo sul e, com êxito, chegou às portas do Palácio da Presidência. Outra, pelo norte, foi derrotada, frustrando o plano de ocupar a capital. Sem apoio da população estreitamente vigiada pela polícia ou conivente com o governo, os praieiros não puderam enfrentar o exército oficial que retornara à cidade. Então, só restou a retirada.
Desfalcado em quinhentos soldados, e deixando para trás, aprisionados, refugiados ou mortos (caso do deputado Nunes Machado) alguns de seus comandantes, o Exército Liberal retirou-se organizado em dois grupos. O primeiro, liderado por Peixoto de Brito, Morais, Roma e Borges da Fonseca, deslocou-se para a Paraíba, mas, perseguido, dissolveu-se no início de março, com um chefe morto (Roma), um preso (Borges), dois exilados (Morais e Peixoto de Brito) e vários perdoados; seus soldados foram detidos ou liberados para retornar a seus engenhos. O segundo, que reuniu os combatentes do capitão Pedro Ivo e de senhores de engenho do sul da província, retornou a seu território, onde, refugiado nas matas, resistiu até o início de 1850. A concessão do perdão individual ou do exílio a alguns chefes foi um artifício para apressar a desmobilização dos liberais, a finalização da guerra e do processo contra os chefes aprisionados. O julgamento, realizado em agosto de 1849, os condenaria à pena exemplar – prisão perpétua com trabalhos forçados – pelo crime de “rebelião”, punição suspensa alguns anos depois por uma anistia que não logrou devolver aos rebelados e aos “liberais históricos” o lugar de destaque que haviam ocupado, até então, na política da província e do Império.
Por Izabel Andrade Marson – Professora do Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade de Campinas (Unicamp), mestre e doutora pela Universidade de São Paulo (usp) e livre-docente pela Unicamp. É autora de várias publicações sobre a Revolução Praieira e sobre Joaquim Nabuco e sua obra.