A Carta Régia de 28 de janeiro de 1808 decretou a abertura dos portos do Brasil ao comércio internacional. A assinatura do decreto se inseriu em uma conjuntura internacional complexa que envolveu potências europeias e as áreas coloniais americanas.
A invasão de Portugal pelos exércitos franceses, em 1807, deu início a uma fase de fundamentais definições para os destinos do Império português e, consequentemente, do Brasil. Impossibilitado de resistir ao invasor, o príncipe regente D. João, com seus familiares, ministros e mais alguns milhares de pessoas, abandonou Lisboa em 29 de novembro daquele ano e rumou para a América. Acreditava-se que, longe do turbilhão europeu e com sua nova sede instalada no Rio de Janeiro, a Corte de D. João teria condições de reorganizar e fortalecer o Império.
Nos anos imediatamente anteriores, o cenário político europeu tornara-se dramático. Se a França conquistara notáveis vitórias militares em terra, nos mares o poderio britânico ainda era inabalável. Tentando mudar essa situação, Napoleão Bonaparte decretara, em 1806, a proibição de desembarque, em quaisquer portos continentais europeus, de navios a serviço de países que não fossem aliados da França. A medida afetava tanto o Império britânico quanto o Império português. Por um lado, fazia com que a Grã-Bretanha fosse, agora, praticamente a única alternativa de escoamento da produção e comércio portugueses, já que a guerra na Europa estrangulara suas tradicionais vias continentais. Por outro lado, as grandes dificuldades que a Grã-Bretanha encontrava para comercializar com Portugal tinham uma saída quase que natural nos territórios coloniais, cujos mercados acenavam com possibilidades privilegiadas de fluxo dos produtos britânicos. Finalmente, o bloqueio continental impedia que os gêneros luso-americanos aportassem em Portugal – para onde tradicionalmente seguiam –, acumulando-se nos portos do Brasil sem escoamento.
Assim, compreende-se que a arriscada travessia atlântica da Corte portuguesa tenha sido feita sob proteção da armada britânica. Compreende-se, também, que pouco depois de aportar de passagem por Salvador (22 de janeiro de 1808) a caminho do Rio de Janeiro, o príncipe regente tenha decretado a abertura dos portos do Brasil ao comércio internacional (Carta Régia de 28 de janeiro de 1808), o que, na prática, beneficiava sobretudo o comércio britânico. As duas medidas atendiam a necessidades e interesses de ambos os impérios, posicionando-os em uma estreita aliança política, econômica e militar.
Até aquele momento, o comércio do Brasil fora sujeito ao controle metropolitano português, que visava dele obter lucros que justificassem a empresa colonial montada a partir do século XVI. Submetido permanentemente às provações a ele impostas pela corriqueira prática do contrabando, o monopólio fora antes um projeto, um ideal metropolitano, do que uma realidade absoluta. Nessa condição, era perseguido pela administração lisboeta com variável tenacidade e eficácia, a depender das circunstâncias históricas em que se encontrasse o Império. No início do século XIX, essas circunstâncias mostravam a incapacidade das grandes reformas setecentistas frutificarem em termos de uma melhor inserção de Portugal e seus domínios na competição internacional que, desde longo tempo, lhes relegara uma posição secundária. Por isso, as estruturas da colonização portuguesa, mesmo mantidas em pé em 1808, necessitavam urgente revisão.
Com a transferência da Corte para o Brasil, ficava clara a caducidade da relação colônia–metrópole que articulara, durante tanto tempo, Brasil e Portugal (o reconhecimento definitivo dessa caducidade viria somente em 1815, com a elevação do Brasil à condição de Reino, unido a Portugal e Algarve). Como parte dessa ampla e profunda revisão, a transformação do Brasil em sede da monarquia e as circunstâncias europeias impunham a inadequação também do regime de monopólio, formalmente extinto com a abertura dos portos em 28 de janeiro de 1808.
É costume conceber-se essa nova fase da história do Império português como caracterizada pelo início de um processo no qual, supostamente, o Brasil começava a deixar de ser uma colônia de Portugal para se tornar uma “colônia informal” da Grã-Bretanha. Nessa ótica, os acontecimentos de 1808 apontariam para uma simples “transferência de dominação”, iniciada já desde os tratados comerciais anglo-portugueses de 1654 e de 1703 e os dividendos ingleses da exploração aurífera da América portuguesa, e que culminaria com a Independência de 1822.
Essa é uma versão muito simplista da história e não dá conta de sua devida complexidade. Não se pode negar que a abertura dos portos do Brasil ao comércio estrangeiro atendia aos interesses britânicos – que pela mesma época também conseguiriam permissão para comerciar livremente nos portos espanhóis de Montevidéu e Buenos Aires e, em seguida, em 1810, novos tratados com a Corte portuguesa – e que ela reafirmava a aliança político-econômica estabelecida entre Portugal e Grã-Bretanha contra a França de Bonaparte. No entanto, há que se salientar que, ao contrário do que se costuma afirmar, durante a segunda metade do século XVII e todo o século XVIII, Portugal manteve uma política externa formalmente neutra, sem aliar-se incondicional-mente à Inglaterra a despeito de algumas aproximações circunstanciais com a Corte londrina. Essa aliança só seria definida às vésperas da partida da Corte portuguesa para o Brasil, quando o gabinete joanino finalmente avaliou que a neutralidade se tornara insustentável, e que o Império português dependia do apoio britânico para sobreviver.
Além disso, não se pode equivaler o que representara, para a América, a dominação portuguesa e o que representaria, a partir daí, a influência britânica. Até finais do século XVIII, a Grã-Bretanha era uma força política que competia, no cenário mundial, na mesma condição que outras, como a França e a Holanda. A sua condição de potência hegemônica mundial começou a se delinear com a Revolução Industrial, mas na primeira década do século XIX ela ainda não estava plenamente consolidada. Nos novos padrões mundiais que começavam a ser estabelecidos por um sistema capitalista no qual a fonte fundamental de enriquecimento dos Estados se encontrava não mais apenas na esfera da circulação, mas sobretudo na da produção de bens, o Império britânico construía sua força com base em mecanismos bem mais complexos do que a tradicional colonização de tipo mercantilista sobre a qual Portugal erigira o seu próprio Império. Por isso, muitos autores entendem, corretamente, que a história das colonizações europeias, iniciada no século XV, deve ser divida em duas: uma fase mercantil e outra capitalista industrial.
Portanto, o pleno significado da abertura dos portos do Brasil ao comércio internacional deve ser buscado em meio a um grande processo de redefinições estruturais que atingia todo o mundo ocidental desde meados do século XVIII. Parte integrante desse movimento, a América portuguesa observa, a partir de 1808, o início da liquidação de algumas de suas estruturas coloniais que resultará, em 1822, na Independência do Brasil. Em última instância, a síntese desse processo é um resultado historicamente específico da América, como contrapartida política da reestruturação econômica do mercantilismo rumo ao capitalismo industrial: a formação de um Estado e de uma nação não mais portugueses, mas sim brasileiros.
Bibliografia
- Novais, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
- Slemian, Andréa; Pimenta, João Paulo. O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
- Alexandre, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Afrontamento, 1993.
João Paulo Pimenta – Professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Fonte: PIMENTA, João Paulo. “Abertura dos Portos”. In: BITTENCOURT, Circe (org.) Dicionário de datas da História do Brasil. Editora Contexto.
Imagem: Porto do Rio de Janeiro em 1808, ano em que Dom João VI mandou abrir os portos, em obra de Smyth.