2018 marca os 50 anos da onda de protestos que tomou o mundo em 1968. As razões para esse fenômeno ter ocorrido de forma quase sincronizada em vários países do mundo ainda são motivo de disputa entre os historiadores. Pautas gerais podiam ser reconhecidas, como a busca por maior liberdade ou o rompimento com velhas estruturas sociais. Por outro lado, cada país mostrava também suas particularidades, como no caso do Brasil, onde o endurecimento da ditadura militar era fator central dos protestos.
Na Alemanha, entretanto, pode-se dizer que 1968 começou em 1967,[i] em um protesto dos estudantes em frente à Ópera Alemã (Deutsche Oper), em Berlim, contra o xá do Irã.[ii] Esse primeiro grande evento do 68 alemão foi marcado por uma forte repressão policial, pela utilização de táticas voltadas ao combate e à perseguição, e não ao controle dos cerca de 2.000 indivíduos que protestavam no local. Como resultado, vários feridos e um estudante, Benno Ohnesorg, assassinado por um policial com um tiro na nuca.
O ocorrido gerou uma encruzilhada no país; por um lado, governo, policiais e a parte mais conservadora e tradicionalista da mídia e da sociedade alemã criticaram firmemente os estudantes, chegando a elogiar as ações dos policiais, classificando os protestos como baderna ou indisciplina e caracterizando os estudantes e aqueles que os apoiavam como ingratos e agitadores. Por outro lado, o que aconteceu naquele 2 de junho de 1967 unificou os movimentos estudantis no país inteiro, deu formas a um pensamento contestador razoavelmente coeso e fomentou mudanças no plano maior da política alemã. Peças-chave naquele momento, o então chanceler alemão, Kurt Georg Kiesinger (CDU) e o chefe de polícia da cidade de Berlim, Erich Duensing, tinham íntima conexão com o passado nazista do país: Kiesinger havia sido apoiador e membro do partido nazista, e Duensing fez carreira na Wehrmacht. Ficava evidente que os resquícios do autoritarismo de uma ditadura sanguinária não se apagavam facilmente, e acabavam impregnando a própria democracia e suas instituições. No caso da Alemanha Ocidental, o autoritarismo, a violência e o anticomunismo ainda estavam muito presentes na visão de mundo de boa parte da sociedade, e a associação dos estudantes com os inimigos do momento, os comunistas, era imediata. Em um mundo preto-e-branco, qualquer dissidência ou contestação é automaticamente condenada e classificada como inimiga.
O segundo grande evento do 68 alemão ocorreu em 17-18 fevereiro de 1968. Cerca de 4.000 pessoas assistiram ao Congresso Internacional sobre o Vietnã na Universidade Técnica de Berlim. Os questionamentos à ordem imperialista que ditava as relações dos EUA com seus aliados, a guerra que se arrastava e mostrava sinais de brutalização no Vietnã e os ideais de liberdade e de solidariedade levaram cerca de 12.000 pessoas às ruas, em protesto. Alguns dos maiores intelectuais europeus daquele momento, como Jean-Paul Sartre, Herbert Marcuse, Bertrand Russel e Pier Paolo Pasolini apoiaram a iniciativa, reforçando as ações. O movimento, nos meses seguintes, abraçou pensamentos e práticas coletivas, lutou por uma educação mais horizontalizada e mais humanizada, defendeu os direitos das minorias, a igualdade de gênero e criticou o desenvolvimento de um capitalismo predatório e descompromissado com os indivíduos. Na década de 1970, grupos inconformados com os poucos avanços práticos passaram a denunciar o que chamavam de características fascistas intrínsecas ao capitalismo e a pregar o terrorismo como meio de combatê-lo. O principal desses grupos dissidentes foi a Rote Armee Fraktion (RAF), cuja trajetória se tornou inspiração para o filme de 2008, O Grupo Baader Meinhof.
Mas o principal legado da geração de 68 para a Alemanha é mesmo a retomada do passado. É o confronto com os crimes que seus pais haviam permitido ou cometido. O questionamento de como foi possível que se deixassem envolver por uma retórica vazia e virulenta, contra minorias, tomada de um nacionalismo que permitia a segregação, a perseguição e a eliminação de seus vizinhos. É também a busca pelas razões do silêncio, dos esquecimentos, da falta de reflexão sobre seus erros. 68 marca o início da (auto)responsabilização dos alemães pelo seu passado, de sua análise crítica sobre sua memória. É a percepção de que ditaduras podem nascer de democracias, de que democracias precisam de cuidado permanente.
[i] É o que afirma Hajo Funke, professor emérito de Ciência Política da Universidade Livre de Berlim em artigo autobiográfico. In: https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/18485/10997
[ii] Para os estudantes, era inconcebível que um país democrático, no caso a Alemanha Ocidental, recebesse com pompas um chefe de Estado de um regime considerado autoritário.
Vinícius Liebel é historiador e pesquisador da Europa contemporânea (séculos XIX e XX) e tem se dedicado especialmente à História política e cultural da Alemanha. Em livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, seu foco tem sido a primeira metade do século XX, a ascensão do nazismo, do antissemitismo, do totalitarismo e os dois conflitos mundiais. Formou-se em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e possui doutorado em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim (FU-Berlin). Pela Editora Contexto, publicou Possibilidades de pesquisa em história e Os Alemães.