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O que te inspira? | Rubens Marchioni

LÁ ESTÃO ELAS. O que buscam? Encontrar a musa. Nisso, algumas pessoas trabalham como se desejassem colocar as mãos no que, enfim, salvará as suas vidas do fogo do Inferno. Mas, o que trazem na mochila, quando voltam dessa viagem? Certo modelo de inspiração? Não creio que seja.

E ainda que a tivessem encontrado, esse estado mental ou emocional, que diz respeito ao ato de estimular o ímpeto criador, tem importância relativa no trabalho de ter ideias e transformá-las em obra de arte. Não conduzem uma criatura até o mais alto dos céus.

O que acontece quando o assunto é inspiração? Historicamente, o conceito foi visto na ótica dos autores da Sagrada Escritura. Eles eram tidos como diretamente inspirados por Deus para produzirem os livros sagrados. Teriam atuado sob a força do Espírito Santo, apenas emprestando a mão para que o texto se concretizasse.

Assim, tudo passou a ser visto como algo muito elevado, inatingível às pessoas comuns. E isso provocou uma barreira que, para muitos, tornou-se intransponível. Criar e escrever estariam, necessariamente, condicionados a receber mensagens diretamente do céu, num ambiente no mínimo composto por uma aura de mística e contato direto com anjos e querubins. Algo que sugere um clima de mediunidade, trabalho terceirizado pela grande musa.

No entanto, a literatura é uma arte que não nasce e nem trabalha assim, e aqui peço desculpas a quem ficou decepcionado. Em Os segredos da ficção, Raimundo Carrero lembra que “Ninguém fica inspirado: impulsiona-se. Não conversa com os deuses, não é distinguido pelas musas. Procura a voz narrativa e escreve. Só isso.” Por sua vez, o escritor e colunista Luis Fernando Veríssimo simplifica mais ainda essa história ao afirmar: “A minha musa inspiradora é o meu prazo de entrega.” Não é tão difícil. Mas exige certa dose de atitude e coragem de abandonar o medo de se aventurar, criando as habilidades necessárias para essa viagem incrível, feita aqui mesmo na terra – na sala de casa, num café, no lugar mais corriqueiro que se tem à mão, com papel de rascunho…

Com isso quero dizer que ficar procurando pela inspiração pode levar, no máximo, a uma experiência de frustração acentuada. Afinal, tudo indica que ela não vai aparecer. Sem contar a sua extrema fragilidade. “A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho a perturba e mesmo emudece.”, advertiu Mário de Andrade. Uma grande bobagem, portanto.

É mais produtivo, nesse caso, mudar a maneira de lidar com o assunto, tentar outra abordagem. Por exemplo: você olha para o lado e vê um casal caminhando. O homem vai à frente, a mulher logo atrás. Então você enxerga nesta cena o start para iniciar um trabalho. Ela serve como ponto de partida para a produção de um texto sobre a maneira, às vezes sutil, como em nossa sociedade a mulher é colocada em segundo plano, restando-lhe apenas a opção de ir um pouco atrás do homem. Por que só um pouco? Porque assim a discrepância não fica tão visível, e seu combate se revela mais difícil. Muitos clássicos da literatura nasceram assim.

Perceba que tomar o comportamento de um casal corriqueiro como ponto de partida, isso nada tem a ver com esperar que as musas venham lhe trazer respostas prontas e iluminadas. Significa que você observa a realidade à sua volta, tem senso crítico e se dispõe a falar, de uma forma original, sobre algum recorte neste grande cenário. Sem musas, mas com pesquisa e trabalho. Tudo para fundamentar o que se pretende sugerir ao prezado leitor, que vai destinar uma parte do seu tempo para apreciar a sua produção literária. [Por falar em trabalho, essa prática pode ter implicações muito positivas na sua carreira, mesmo que você não pertença ao mundo das Letras. Não é incomum um texto despretensioso abrir portas].

Por que trabalhar de maneira criativa, inspirada? Porque, quando embasado num conteúdo de qualidade e que faça diferença, por ser inédito em todos os seus aspectos, esse é o jeito mais eficiente de cativar e prender a atenção. A matéria prima, ou o olhar que se tem sobre ela, é novo. Devidamente manipulada, misturando elementos da própria cultura e vivência, a revelação é apenas uma consequência natural. Surge, então, um jeito novo de enxergar o que passava batido, despercebido. Esse é o grande resultado produzido pela criatividade, quando ela usa de maneira adequada o que se convencionou chamar de “inspiração”.

De tudo isso, o que se conclui é que trabalhar com a inspiração significa olhar para a realidade, ver o que todos viram e poucos enxergaram, e extrair daí os elementos necessários para encantar, despertar e motivar as pessoas. Talvez seja uma questão de se permitir uma postura de liberdade em relação a todo esse processo. Gente muito séria não cria, apenas reproduz atas e relatórios com sabor de subnitrato de pó de nada.

Agora pense nos valores implícitos nessa prática e motive-se a criar. Transforme-se. Transforme. A experiência vai ser surpreendente. Eureka!


RUBENS MARCHIONI é palestrante, publicitário, jornalista e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Autor de Criatividade e redação, A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected] — http://rubensmarchioni.wordpress.com