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Marisa Lajolo | “Escreveu, não leu…

Por Marisa Lajolo

marisa-lajolo…o pau comeu”, ameaça ditado antigo – acho que do tempo da avó da avó da minha avó. O pau comeu? No lombo de quem? De quem escreveu ou de quem não leu?

Vai saber…

O que sei é que escrevemos muito, quase todos os dias. Um leitor mal-humorado interpela: – Quem é o “nós” do “escrevemos”? Respondo que parcela significativa da humanidade escreve e lê. Por exemplo, nós todos aqui do FB e arredores. Mas nem sempre quem lê entende o que quem escreveu pretendia que fosse entendido…

Complicado?

Não. Pense em sua história de escriba e de leitor, e você vai ver que já viveu dos dois lados da página, não entendendo e não sendo entendido… E quem é que merece pau no lombo? Quem escreve ou quem lê?

Guia de escrita, de Steven Pinker (Ed. Contexto, 2016), cria oportunidade extraordinária para pensarmos sobre o assunto. Aliás, não só para pensarmos sobre leitura e escrita, mas para vivermos melhor nossa vida de escribas e de leitores. Escribas e leitores de todos os tipos: leitores e escribas de e-mails, de ofícios, de blogs, de anúncios, de best sellers, de poemas e de obras-primas!

Como?

escritas-pinkerAssim: Pinker é professor na Universidade de Harvard. Sua especialidade é estudar a capacidade humana de aprender, particularmente de aprender línguas. Um livro dele anterior a este Guia de escrita tem por título O instinto da linguagem (Martins Fontes, 2002), título que já exprime a tese que – creio eu – fundamenta este seu livro mais recente.

Para Pinker, aprender uma língua e falá-la é um instinto humano, assim como fazer teias é um instinto das aranhas. Acho ótima a comparação: não se pode dizer que falar é tecer significados com sons e silêncios? Acho que se pode, sim.

E Pinker articula com engenho e arte a passagem de noção de linguagem como capacidade humana inata para a noção de escrita: passagem do reino da natureza para o reino da cultura: falar e entender competentemente nossa língua nativa independe de aprendizado formal. Crianças pequenas que o digam… Mas, usar competentemente a escrita, e seu vice-versa, a leitura, é outra coisa. Muito outra!

E não é justamente na passagem do oral para o escrito que o pau come…? A avó da avó de minha avó dizia que sim…

Nascemos aptos a aprendermos, espontaneamente, qualquer língua humana. Mas a aprendizagem de qualquer escrita não é nada espontânea: é preciso que alguém ensine para que alguém aprenda. Ou seja: enquanto a fala é uma capacidade biológica de homens e mulheres desde pequenininhos, escrita e leitura são capacidades culturais, aprendidas por alguns machos e fêmeas da espécie humana.

A beleza deste Guia de escrita é que nele Pinker se vale do que hoje se sabe sobre como produzimos significados para explicar e discutir os riscos de desencontros quando escrevemos e quando lemos. Sobretudo quando lemos o que outra pessoa escreve.

Pinker sabe, claro, que não há receitas absolutas para evitar o desencontro entre quem escreve e quem lê, que desencontros estão sempre no horizonte do possível, que pena! Mas ele aposta em resultados de pesquisa das ciências da cognição, combinados com conhecimentos de modos de ser das linguagens e da escrita (em suas relações com a oralidade, por exemplo) para que nos tornemos mais eficientes em escrita e em leitura.

Como? Assim: Pinker nos familiariza – a nós escribas – aos recursos que a língua oferece para tentarmos pilotar ao máximo o que nossos leitores leem no que escrevemos. Mas… vale lembrar – e Pinker volta e meia nos lembra –  que tentar ao máximo não garante sucesso.

Mas vale a pena.

Multiplicando exemplos, analisando dezenas de textos escritos e discutindo eventuais interpretações – certas e erradas – deles, Pinker neste Guia de escrita nos torna bem mais competentes na  escolha de procedimentos de escrita e de leitura. Aprendemos, por exemplo, que escrever bem exige ler bem. E que ler bem exige ler muito.

Sorry, leitores preguiçosos! É isso mesmo: para o autor, todo bom escritor é um bom – um excelente! – leitor. A proposta de Pinker tem um subproduto interessantíssimo: pode oferecer um sentido novo para a análise de texto. Permite que se acrescente às velhas práticas correntes em disciplinas de literatura a desmontagem de textos alheios. Não em nome de eventuais sentidos literários meio absconsos, mas em nome da montagem de nossos próximos textos.

Também ponto interessante discutido no livro é se quem escreve sempre escreve tendo na cabeça uma imagem (ainda que vaga) de quem vai ler o escrito. Será? Ou será que escrevemos para completos anônimos? E será que há quem escreva para as gavetas? Ou para si mesmo? A ideia é que, pondo-nos em lugar de nosso pretendido leitor – e relendo nosso texto com os olhos dele –, aumentam as chances (só aumentam!) de nosso texto ser compreendido como queríamos que fosse.

Talvez seja esse caráter de jogo radical e sempre inconcluso entre escribas e leitores que torna a escrita atividade tão fascinante quanto antiga. Encantava os babilônios que faziam sulcos na argila fresca, levou israelitas a, por respeito, não grafarem todas as letras da palavra Deus e os usuários do inglês escrito a escreverem sempre com maiúscula o pronome de primeira pessoa.

Com as páginas do livro pontilhadas de eu e de você, não há como o leitor não se contagiar pelo entusiasmo e pela clareza com que Pinker discute a linguagem humana. A coloquialidade do estilo – reforçada pelo projeto editorial – transforma os cinco capítulos do livro numa conversa do autor com os leitores.

A alteração do título do original inglês (The sense of style) para a versão brasileira (Guia de escrita) tempera com pragmatismo a primorosa tradução do livro. Rodolfo Ilari, responsável por ela, conseguiu o raro milagre de manter, no português, marcas registradas do estilo de Pinker. Marcas estas que raramente andam juntas: rigor conceitual, exemplificação do cotidiano, coloquialismo e – sobretudo – humor.

Bendito humor! Bendita tradução!