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Mais que uma foto da América Latina

Em novo livro, Tulchin analisa as tensas relações entre o Norte e o Sul do continente

Por Nicolau da Rocha, advogado e jornalista, para o jornal Estado de S. Paulo

Mesmo entre os mais ardorosos defensores do rigor da linguagem, não houve dúvida de que o anúncio, em 2015, do restabelecimento das relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba, ao simbolizar a superação de um dos paradigmas mais marcantes da guerra fria, podia e devia ser considerado um acontecimento histórico. O celebrado evento, porém, mais parece ser a exceção que confirma a regra a respeito da dificuldade de analisar o tempo presente. Com sua abundância de sinais, a proximidade temporal potencializa o perigo – sempre presente em qualquer raciocínio sobre a realidade – de chamar de conclusões o que são apenas premissas ou preconceitos.

Debruçar-se sobre o presente, portanto, não é tarefa fácil. Refletir com consistência sobre o contemporâneo exige mais que um olhar atento. O respeito à complexidade do agora – com seus matizes, suas contradições, suas relações com o passado – envolve reconhecer a limitação da perspectiva pessoal e a consequente necessidade de ouvir terceiros, seja pela leitura, seja pelo diálogo. Expressão de um complexo processo não linear, o presente não é mera instantaneidade.

É essa consciência da complexidade do presente que o leitor encontra no novo livro do historiador Joseph S. Tulchin, “América Latina x Estados Unidos: uma relação turbulenta” (Editora Contexto, 2016). Para oferecer uma compreensão das tensas relações entre o Norte e o Sul americanos que não seja simplesmente reflexo das idiossincrasias políticas de seus analistas, o autor – especialista em América Latina e doutor pela Universidade Harvard, foi professor na Universidade Yale e diretor do Programa Latino-Americano do Woodrow Wilson International Center for Scholars em Washington – percorre a trajetória da política externa dos países latino-americanos desde a época da independência deles até a nova relação entre Cuba e Estados Unidos.

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Segundo Tulchin, o objetivo do livro é “cobrir todo o processo – da independência até o presente – de como diferentes países passaram a ver a si mesmos no mundo e como formularam políticas externas para defender seus interesses nacionais”. Seu método foi “justapor a postura dos EUA em relação à de países da região em diferentes momentos históricos para entender melhor como se administra a transição da hegemonia para uma comunidade de nações que exercem seu protagonismo”.

Por meio de uma cuidadosa narrativa histórica, Tulchin mostra a disparidade existente, desde a independência, entre os Estados Unidos e os países da América Latina no modo de ver e se relacionar com o mundo. Mesmo quando ainda eram fracos e vulneráveis, os EUA viam na política externa um importante elemento de sua identidade enquanto país e sabiam que a atuação internacional não podia ser feita de forma improvisada. Era preciso fundá-la em bases racionais e transparentes tanto por questões de eficácia quanto de ordem democrática. Como parte do poder delegado aos governantes pelo voto, a condução da política internacional também devia ser objeto da prestação de contas à sociedade.

Já a visão da política externa predominante entre as lideranças da América Latina era bem diferente, com um manifesto descaso por exercer algum protagonismo internacional. “O que podemos chamar de política externa dos movimentos de independência (da América Latina) consistiu mais em uma ideia universalista de uma irmandade de homens, oriunda da Revolução Francesa, do que uma ideia específica de como poderiam, com apoio local, obter um lugar no sistema internacional”, afirma Tulchin. Por muito tempo a política externa foi vista como uma questão essencialmente defensiva, de proteção de território.

Utilizando essa diferença de atitude como fio condutor da narrativa do texto, Tulchin fugirá intencionalmente de uma perspectiva norte-americana na análise das relações internacionais no continente. Quer uma abordagem capaz de abrigar também a percepção histórica dos países latino-americanos. Não se furta, porém, de mostrar a incongruência de pontos importantes da narrativa latino-americana segundo a qual os EUA impuseram uma hegemonia sobre a América Latina. Mais que dos Estados Unidos, o autor parece dizer, a América Latina é vítima de suas próprias ideias.

Além de superar o enfoque maniqueísta sobre as relações entre América Latina e EUA, o livro de Tulchin tem outro grande mérito: respeita a riqueza e a complexidade da ação humana, sem condicioná-la a causas exclusivas ou a prévios enquadramentos teóricos.

Conforme o autor explica no posfácio, tal posição se deve a duas lições aprendidas na Universidade Harvard com o professor Ernest R. May. A primeira refere-se ao fato de que os líderes de cada nação podem ter – e de fato têm – diferentes visões de mundo e essas diferenças afetam a formulação das respectivas políticas externas. Além de outras consequências, essa primeira lição fundamenta a possibilidade da existência de várias perspectivas, igualmente válidas, sobre os assuntos internacionais. Olhar apenas por um ângulo é sinônimo quase certo de erro.

A segunda ideia de May refere-se ao modo como as decisões – coletivas ou individuais – são tomadas. Na ponderação sobre qual caminho escolher, há a influência tanto das crenças profundamente enraizadas quanto dos cálculos de oportunidade circunstancial. Ainda que contraditória com um padrão de comportamento de longa duração, determinada decisão não significa necessariamente a revogação desse padrão. Uma análise precisa, portanto, diferenciar o circunstancial do que é perene. Com frequência, no entanto, os líderes das nações erram nessa distinção, tanto ao decidir como ao interpretar as decisões de terceiros, fazendo com que a História esteja repleta de mal-entendidos. O professor Tulchin tenta desfazer alguns deles.