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A saga de escrever um livro | Virgilio Galvão

As pessoas interpretam a escrita de várias maneiras. Alguns a entendem como um ato revolucionário, outros a encaram como desabafo e há quem a enxergue como meditação. Bem, escrever é isso tudo e além, mas, para pessoas como eu, escrever é acima de tudo necessidade. Se não fosse, como eu encontraria tempo para isso em uma rotina que inclui trabalho, esposa, filha, casa, vida social, contas e todas as outras atividades do cotidiano de uma vida normal? Pois é, a escrita está sempre no fim da lista das tarefas diárias, mas não me abandona. Escrever é guerrilha.

A escrita em si já me seria suficiente, mas não nego que a realização pessoal completa só viria com a publicação de um livro. Assim, em setembro de 2016 eu iniciei a aventura daquilo que um dia poderia me dar a chance de ser chamado de autor. O tema não poderia ser outro, o país que acolheu a família Galvão em 2015. Com a sorte de já ter visitado mais de 20 países, eu sempre tive fascínio pela história deles, os hábitos de seus povos e tudo mais que os fazem ser o que são. Morando nos EUA, eu poderia exercer esse hábito diariamente e, melhor ainda, compartilhar a informação com os leitores. Então por que não tentar?

De cara descobri que o processo é dolorido. A empolgação do início vai dando lugar à eterna falta de tempo. Tempo, aliás, é uma das primeiras questões que eu abordo no livro. Está lá na introdução. Não sei o que acontece, mas parece que o relógio aqui anda mais rápido. No início da minha aventura literária, eu dividia o tempo livre entre escrever, estudar francês, praticar violão, caminhar no parque e assistir uma série na Netflix. Depois percebi que o livro não acabaria nunca nesse ritmo e, uma a uma, fui deixando de fazer as outras atividades até dedicar todo o tempo livre para ele, o livro. Mais ainda, passei a dedicar o tempo não-livre também. Escrevi na calada da noite, no intervalo do trabalho, durante o passeio com o cachorro, enquanto o frango assava no forno e – exatamente como estou fazendo neste momento – escrevi no trem à caminho de casa. Esqueça aquela imagem do autor isolado em uma sala silenciosa. A realidade de mortais como eu é bem diferente. Não foram poucas as vezes em que escrevi enquanto balançava minha filha no colo. Refeição? Era uma mão no sanduíche e outra no teclado. No intervalo do trabalho, era normal escrever enquanto conversava com os colegas e ainda vivenciei a clássica cena de escrever tomando um café na Starbucks. Muitas vezes escrevia em lugares improvisados e apertados onde era quase impossível mexer os braços. Lição número um: escrever é um prazer, mas nada glamoroso.

Escolher os tópicos foi um grande desafio. Quando um livro começa a nascer nas primeiras páginas, temos a tendência de querer falar sobre todo e qualquer assunto que tenha alguma ligação com a proposta; tudo interessa e qualquer detalhe é bem-vindo até o momento em que você descobre que ninguém está disposto a publicar uma nova Bíblia. Foi aí que entrou em cena minha experiência de 20 anos como editor de TV. A função de um editor, basicamente, é selecionar todo o material reunido pela produção e colocá-lo em determinada ordem para que o público em casa assista ao programa sem exceço de informação. Esse meu instinto de editor me ajudou a escolher tópicos relevantes que proporcionariam uma radiografia interessante do país que inspirou o livro: política, economia, diversidade, saúde, educação e esportes. Um capítulo para cada tópico mais um capítulo de introdução onde vários assuntos se entrecruzam rapidamente e um capítulo final com minhas considerações pessoais. Gostei do resultado porque a soma desses tópicos nos permite entender muito da vida cotidiana nos EUA.

A pesquisa parece uma fase sem fim. Com tanto livro, jornal, revista, documentário, Google e YouTube por aí, é possível passar anos pesquisando sobre um assunto. Se o autor não estabelece um limite para si, passa a se comportar como um cachorro correndo atrás do rabo. A boa notícia é que, com o passar do tempo, a experiência nos dá traquejo seletivo. No meu caso, uma olhadela rápida e já era possível distinguir a informação útil da inútil. A partir daí as coisas começaram a se desenvolver naturalmente. Aos poucos fui escrevendo exatamente como eu editava na TV, selecionando cuidadosamente cada informação para que o leitor tivesse a chance de entender o texto sem explicação demasiada, a chamada “barriga”. Um detalhe que muita gente não sabe é que às vezes o texto vai se formando nas atividades diárias e longe da pesquisa. Um comentário de um amigo pode ser aquela linha que faz a ligação perfeita entre os parágrafos. Uma cena no metrô pode ilustrar perfeitamente aquela explicação complexa. Anos atrás, eu li uma entrevista com o grande escritor Ignácio de Loyola Brandão e ele falou que não saía de casa sem um pequeno bloco de anotações e escrevia tudo de interessante que testemunhava. Dali ele tirava muito material para seus livros. Passei a fazer o mesmo e descobri que a rotina diária é uma fonte de informação sem esforço, sem custo e sem fim. Muito do que eu queria entender e escrever apareceu na minha frente em situações banais, bem longe da bibliografia. Acho que a mistura reportagem e testemunho se provou certeira. Em alguns parágrafos sou o jornalista escrevendo em terceira pessoa, em outros sou o morador escrevendo em primeira pessoa. Justamente por isso, o livro ia se transformando frequentemente. Para chegar ao texto final, acabei escrevendo três vezes mais. Quando eu pensava que determinado assunto já estava pronto, alguma situação nova me obrigava a atualizá-lo. Cheguei à conclusão de que o livro é um ser vivo, se reinventa e se transfigura diversas vezes.

Um autor casado precisa dar o devido crédito ao cônjuge e aqui estou dando o crédito merecido à minha esposa. Ela cansou de me chamar e esperar, esperar, esperar… “Já estou indo” virava 10 minutos; “chego em cinco minutinhos” virava meia hora; “depois eu dou uma olhada” virava uma semana e “vejo isso semana que vem” virava três meses. Muita gente não entende, mas a fluidez de pensamento é fundamental para um autor. Não é agradável interromper um parágrafo para continuar mais tarde, é preciso dar vazão ao turbilhão de informações que o cérebro está processando e organizando em frases. Interromper significa aniquilar toda a composição que está sendo transferida para o papel. O texto que é fruto de uma escrita fragmentada é bem diferente daquele escrito em uma única tacada. Isso não é necessariamente ruim, mas é mais penoso. É como andar de bicicleta, ninguém gosta de pedalar e parar, é muito melhor dar várias pedaladas sem interrupções, por isso qualquer escritor fica desesperado quando é interrompido. Nem sempre minha esposa gostou da brincadeira, mas tenho que admitir que ela é quase uma coautora do livro pela compreensão.

Chega um momento em que é preciso dar um basta. Cada revisão do texto significa mudanças. É mais forte que nós. Uma leitura, uma mudança e o ciclo não acaba nunca até o momento em que o autor se convence de que é hora de parar. O alívio é grande, mas não é nada fácil.

A fase seguinte é procurar uma editora para publicar o livro. Pessoas normais como eu e você não têm costas quentes, indicações, facilidades, tratamento privilegiado ou dinheiro para pagar pela publicação. O caminho, portanto, é começar do zero procurando editoras sem qualquer atalho. No meu caso, resolvi conversar com uma especialista no assunto, a Laura Bacellar, e o melhor conselho que ela me deu foi que eu precisaria de um canal para exibir o meu trabalho e, assim, formar um público leitor do meu texto. A mídia escolhida para isso foi… adivinha, esse blog. Diferente do que muita gente pensa, o blog é filho do livro e não o contrário. Hoje, o blog tem vida própria e independente depois de ter cumprido sua função. Vou continuar com ele e peço para que você continue passando por aqui sempre que puder.

Uma outra coisa que aprendi com a Laura Bacellar é que editoras trabalham com nichos, por isso não adianta oferecer um livro sobre tecnologia para uma que só publica livros infantis. É preciso pesquisar, entender o mercado de cada uma e descobrir o caminho para enviar a proposta. Hoje, a grande maioria possui um link em seu site por onde o autor pode mandar um resumo da sua obra. Foi exatamente o que eu fiz. Isso quer dizer que o problema não é enviar sua ideia, mas receber uma resposta. Das dez editoras que receberam minha proposta, duas me responderam. Uma pediu dinheiro para publicar e a outra pediu um tempo para avaliar. Esta última, para minha alegria, decidiu pela publicação. A sensação de receber uma notícia dessas é indescritível. Foram quase três anos enfurnado no projeto do livro e, de repente, eu recebia a recompensa de todo o esforço. Uau!!! Felicidade pura. Como se não bastasse, eu seria publicado pela Editora Contexto, fundada pelo professor Jaime Pinsky – uma das cabeças pensantes mais respeitadas do país –, e conhecida por seus livros extremamente relevantes. Eu mesmo tenho vários livros da editora na minha biblioteca. Imagine o orgulho de fazer parte do catálogo que também inclui – por exemplo – o Leandro Karnal.

O passo seguinte era uma total novidade para mim. É o momento em que o autor e a editora trocam ideias para o acabamento final do texto. Pode ter sido muita ingenuidade minha, mas eu realmente achava que a única revisão que a editora fazia era a de correção de eventuais erros de português. Longe disso. Os editores fazem um pente fino no livro e apontam todo e qualquer problema que identificam na obra. Pode ser gramatical, semântico, de contradição ou de clareza. Apesar de não ter concordado com todas os pedidos de mudança, confesso que eles fizeram um grande trabalho apontando problemas que eu não havia reparado. Fiquei impressionado com o olho clínico da equipe e a sua habilidade de corrigir falhas e agregar valor ao texto. Você pode achar seu texto o melhor do mundo, mas o editor sempre vai achar um caminho para melhorá-lo.

Com o texto pronto, entra em cena outros departamentos da empresa para cuidar da capa, da venda, da divulgação e outras questões que o autor iniciante nem imagina existirem. Aproveito para aqui agradecer a todos da Editora Contexto porque tive a grata surpresa de receber muita atenção da equipe. Fiquei feliz em perceber que todos ali trabalharam duro para que o livro tenha uma boa recepção do público. Se isso vai se confirmar ou não é uma incógnita, mas estou realmente feliz em saber que esforço não faltou. O lançamento foi uma experiência única por reunir em uma tarde de sábado na livraria Martins Fontes grandes amigos, família e desconhecidos que se interessaram pelo assunto.

Vou confessar uma coisa: se eu soubesse do trabalho que teria e do esforço que um livro demanda, eu não teria nem começado, mas agora quero continuar a colaborar com a literatura brasileira explicando o modo de vida americano. Se tudo der certo, outros livros virão.

Espero que você goste. Boa leitura!

Fonte: Blog Estados Unidos na Prática